terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Romilda, do sítio à calçada

Do alto desta colina posso ver algumas crianças brincando. Brincadeira de roda, pega-pega, pique-esconde, tudo que a criatividade infantil é capaz de criar para impedir a amargura dos corações adultos. Eles colhem as frutas da estação direto das árvores. E eu pensava que os sucos saem das garrafinhas do supermercado... As palavras que resumem suas vidas são felicidade e incerteza. Eles vivem sem saber o que eu sei. Eu consigo vê-los, mas eles não me veem. Estou no presente, eles, no passado. O que nos separa é o tempo, o que nos une é a lembrança de uma pessoa que aprendi a respeitar.

O respeito não deveria ser uma opção, deveríamos respeitar o outro e pronto. Preciso me aproximar, abrir o coração para alguém com o coração aberto e me preparar para ganhar. Ganhar dignidade, beleza, carinho, conhecimento e respeito de alguém que não tem isso suficiente para si. Aquela que era transparente tomou cor, orgulhou-se disso e apareceu. Apareceu porque reconheceu que tem nome, história, vida. E é sobre vida que quero falar, sobre as voltas que a vida dá.

Romilda e seus irmãos vivem em uma cidadezinha no interior do Espírito Santo, em meados dos anos 40. Sua mãe é neta de ex-escravos, aprendeu o pouco que sabe com a rudeza de seus pais e com o desdém da sociedade capixaba. Para uma mulher nessas condições, sem estudos, sem trabalho e longe de tudo, o que lhe resta é o casamento. E foi isso que aconteceu. A vida lhe permitiu um casamento razoável. O marido tem um pequeno comércio que lhes permitiu comprar um sítio. Em um hectare de terra – aproximadamente dez mil metros quadrados – eles criam galinhas, cabras e porcos. As árvores e os canteiros fornecem quase tudo de que eles precisam para alimentação.

Romeu se divide entre o armarinho e o sítio. Sua mulher, Hilda, cuida do sítio e às vezes, dos filhos. O serviço é dividido com um agregado que se chegou com o tempo. Quando olho para Hilda, acho que lhe falta amor pelos filhos. Acho que surgiram como uma conseqüência da vida digna que o casamento com Romeu permite. São seis anos de casamento e três filhos, Romilda e Romildo, que são gêmeos e têm cinco anos e Romeuzinho, que tem três. Por que será que é tão difícil aceitar o que a vida nos oferece? Hilda sempre sonhou com um casamento como este, mas não havia pensado nas responsabilidades que isso exige. Os cuidados com os filhos, o cuidado com a propriedade da família, a fidelidade, isso tudo a incomodava. O cuidado com o sítio era uma das poucas alegrias que tinha.

Com o passar dos anos, Hilda percebeu que nunca gostou de Romeu, e sim da vida tranqüila que ele dá. É claro que ele não é um anjo, mas é um chefe de família exemplar, que só se dedica às coisas da família. Por isso, aceitou que um parente de um amigo seu viva como agregado em uma casinha de dois cômodos no sítio, para diminuir o peso das costas da mulher e para que esta tenha mais tempo para os filhos do casal. Bom seria que tivéssemos o poder de prever o futuro! Quantos passos deixaríamos de dar!

Depois que Adão, o agregado, veio viver no sítio, tudo parece que ganhou mais vida. Os animais engordaram, as árvores ficaram mais carregadas, o capim bravo deu lugar às ervas, verduras e legumes – a horta é uma coisa linda. As crianças recebem pouco carinho, mas são felizes com o que têm. Em uma cidade onde poucos moradores têm muito e muitos não têm nada, ter alguma coisa é uma vitória. A dedicação ao sítio era uma expressão da gratidão que Adão tem pela família que o acolheu. Romeu não precisa sair do armarinho para nada. Sai de casa de manhã e volta no final da tarde, sabe que tudo está em boas mãos. Em boas mãos...

Faz pouco que Hilda começou a se encantar com o agregado. Adão, solteiro, sempre prestativo e com uma grande vontade de ser dar bem na vida, percebeu que, cativando a mulher, pode conseguir um pé de meia. Os serviços que ele prestava ao sítio lhe renderam casa, comida e uns trocadinhos. Os serviços que ele prestava a Hilda lhe renderam uma ampliação na casinha em que vive. Dois ingratos!

Com o passar do tempo, a cobiça plantou ideias más na cabeça de Adão. Pensou em dar um fim à vida do homem que lhe estendeu a mão. O destino não permitiu que isso se cumprisse e, subitamente, levou Romeu. Uns dizem que foi coração, outros dizem que foi um tumor na cabeça. Adão diz que foi sorte.

Com Hilda viúva, a bola da vez é Adão, que assumiu de vez o sítio. Dormiu agregado e acordou dono de tudo – era assim que ele se via. Ele fez com Hilda o que esta fizera com Romeu, casou de olho no conforto. Sua atenção se voltou para o sítio e, quando não consegue nenhuma mocinha por fora, lembra-se de Hilda. As crianças são menos importantes que os animais, afinal, não são seus filhos.

Adão fez o que quis com a propriedade. Precisou vender uma parte para quitar dívidas antigas. Assim que pôde, arrumou uma amante fixa. Uma mulher que foi escolhida, diferente de Hilda, que foi-lhe apresentada como parte de um pacote quando foi aceito como agregado. Quando Hilda descobriu, quis separar-se, e, prontamente, Adão concordou – a união durou uns dois anos. Ele fez seus cálculos e ficou com a metade do sítio que sobrou. Agora, Hilda tem menos da metade do sítio original e se responsabiliza por tudo sozinha.

Mas Hilda também não é mole. Usou a desilusão amorosa para aproximar-se da bebida e de alguns homens da região. A falta de instrução fez com que ela engravidasse mais duas vezes e de homens diferentes. Nenhum deles quis assumir a responsabilidade de viver com a mulher e as crianças. Ela era de todos e de ninguém. A essa altura, os gêmeos estavam com uns onze anos e nunca haviam freqüentado a escola.

Certo dia, o Presidente Getúlio Vargas participou da inauguração de uma ponte em uma cidade próxima, mais avançada que a de Hilda. Para lá foram as autoridades locais e muitos populares. Afinal, era uma oportunidade de ver o Presidente de perto. Essa foi a chance que Hilda teve para resolver sua vida. Ela pensava que conseguiria uma vida melhor para seus filhos e mais sossego para si.

A mulher não conseguiu se aproximar de Vargas, sequer o viu, mas recebeu atenção de um major carioca que fazia parte da comitiva presidencial. Hilda contou-lhe sua história e disse que sua maior dor era ver seus filhos impossibilitados de estudar. Até parece!

O major realmente se comoveu com a situação e aproveitou para fazer uma média com os presentes e com o Presidente. Em um ato de caridade, comprometeu-se em apadrinhar Romilda, trazendo-a para viver no Rio de Janeiro, na companhia de sua mulher e de sua própria filha. O menino não teve a mesma sorte. O máximo que sua mãe lhe arrumou foi um trabalho em uma fazenda próxima. Romilda e Romildo nunca mais se viram.

A vida da menina mudou da água para o vinho. Ganhou roupas, calçado, armário, cama e matrícula na mesma escola onde estudava a filha do major. A esposa do major, dona Esmeralda, era meio indiferente em relação às atitudes do marido. Não gostou da vinda da menina, mas também não reclamou. No fundo, viu a possibilidade de transformar Romilda em dama de companhia da filha e empregada da casa.

Diante do marido e das visitas, Esmeralda tratava Romilda com certa delicadeza. Gostava de ser chamada de madrinha. Na ausência de todos, a menina era explorada. Ajudava na limpeza da casa, nas compras, nos cuidados com o cãozinho de estimação e fazia o papel de copeira, enquanto isso, a filha do casal passava o dia no quarto estudando e ouvindo vitrola. Segundo Esmeralda, a menina era frágil e não agüentava as tarefas de casa, como a ágil e esperta Romilda. Cretina.

Um dia, como era de costume, Esmeralda trouxe as meninas da escola e saiu para a casa das amigas. Dona Esmeralda não havia preparado nada de comida e, segundo ordens dela, nenhuma das meninas podia mexer no fogão. A filha do casal, que aprendeu a usar os favores da agregada, queixou-se de fome. Prontamente Romilda preparou-lhe um sanduíche de queijo com marmelada. Não sabia ela o problema que estava arrumando...

Quando Esmeralda chegou e descobriu que Romilda havia mexido na cozinha sem sua permissão, ficou furiosa. E olha que não foi preciso acender o fogão para fazer um sanduíche. A menina foi humilhada, chamada de insolente e, como se não bastasse, levou uma surra com o pesado tamanco de sua madrinha. A má-drinha bateu na menina como se bate em gente grande, chegou a tirar-lhe sangue. Isso foi meio que uma forma de vingar-se do marido, provando-lhe que não foi boa coisa trazer a menina. O major, envenenado pela esposa, acabou deixando Romilda com outra família. Nessa outra família, Romilda era somente uma agregada que precisava pagar pela casa e pela comida com trabalhos domésticos. O casal dava a casa e os filhos mais velhos a comida.

Com vinte anos, Romilda se cansou da vida que levava com essa última família e fugiu. Pensou em voltar para casa de sua mãe, mas, segundo um conhecido, sua mãe adquirira problemas psicológicos, matara o filho mais novo e desistiu de viver. O que Romilda faria de volta à casa materna? Nada. Por isso, resolveu ficar no Rio de Janeiro.

Nossa personagem conseguiu trabalho em feiras, casas de família, mercearias e sempre arranjava um jeito de se instalar por uns tempos em algum lugar. Nunca teve uma casa sua. Não se casou e não teve filhos. Décadas se passaram e ela não pode mais trabalhar. Seu último endereço é uma calçada da Rua dos Inválidos, centro do Rio. De fome ela não morre, assim dizem os frequentadores da igreja, que sempre lhe servem as refeições.

A idade chegou e ninguém se lembra dela. Perdeu sua identidade, sua dignidade e a esperança de um amanhã. Pelo contrário, seu desejo é que não haja um amanhã. Do sítio à calçada, Romilda só pisou em espinhos e desfrutou do pior da vida. A calçada está vazia e os pedestres percebem, apenas, que há mais espaço para andar. Cadê Romilda? Ah, tá! Agora, quem me vê do alto é ela.

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