terça-feira, 4 de dezembro de 2007

A porta do canto

O excesso de cuidados às vezes assusta. Cada um cuida daquilo que lhe agrada. Há pessoas que cuidam muito bem do jardim. Há outras que dispensam cuidados especiais aos animais, aos livros, às coleções e a tantas outras coisas.

Conheço uma mulher que tem uma verdadeira devoção por seu guarda-roupa. Não ria, nem ache estranho. Não é um guarda-roupa qualquer. É uma herança deixada da avó para a mãe e desta para Célia. Um lindo móvel de jacarandá, madeira de lei. Todos os dias ele recebe uma generosa camada de cera protetora. Depois disso, meia hora de flanela macia e lá está ele. Um brilhante troféu protegido pela segurança de duas trancas que a porta do quarto tem.

É um móvel com história, relíquia de família. Traz lembranças que aquecem o coração de sua dona. Dentro dele há recordações que talvez sejam insignificantes para todos, mas para aquela mulher é o resgate de suas origens e um estímulo para o futuro.

Célia é uma mulher de seus 45 anos que perdeu a mãe quando tinha 15. Não se deu bem com a madrasta e, por isso, foi viver com a irmã de sua mãe. São anos de responsabilidade e trabalho. Talvez tenha sido isso que a impediu de casar. Não sei. Ela tem de tudo de que precisa no quarto que ocupa na casa da tia. Cama, cômoda, rádio, TV e o guarda-roupa, que vale mais que dinheiro.

Ela não precisa de espelho, seu reflexo pode ser visto nas portas do amado armário. Célia tem um bom coração. Não é invejosa nem orgulhosa. Capaz de tirar a roupa do corpo para cobrir um necessitado, porém não permite que ninguém entre em seu quarto. Diz que faz parte de sua intimidade, que as coisas só são importantes para ela e que a energia dele é para ela.

O guarda-roupa tem três portas. Na porta da direita, ficam as roupas do dia a dia, na do meio, as roupas de passeio e de trabalho. É atrás da porta do canto, que fica encostada na parede, que Célia esconde seu segredo. Porta aberta e é possível ver um pequeno altar. São fotos de entes queridos e de alguns guias de luz, copo com água, flores, livros com reza, cinzas da mãe e da avó de Célia e muito sentimento.

Quando Célia se tranca naquele quarto, o mundo exterior acaba. Ela faz preces e pede luz. Sua alma fica leve, se enche de esperanças, a tristeza via embora, e uma porta se abre para um mundo invisível.

Através daquele altar, a mulher tem acesso ao passado. Ela reencontra seus parentes e amigos que já partiram e compartilham memórias e experiências esquecidas ou impossíveis para a matéria. A ideia de tempo não existe. Ela pode reviver momentos de sua infância, da infância de sua mãe ou de sua avó, por exemplo.

Nessas experiências, Célia pode acompanhar o casamento de seus avós, que aconteceu em 1936. Pode também saber do paradeiro de dois tios que foram entregues pela avó para adoção. A família acreditava que eles morreram por causa de doenças da infância. Quando ela se encontra com seus amigos e parentes, não sente tristeza, mágoa ou sentimentos assim. Só há espaço para perdão e esclarecimentos. Célia tem encontrado resposta para dúvidas e a origem de certos problemas.

Cada dia que passa, os encontros duram mais tempo. Quando Célia se esquece de ir, os guias a chamam. A relação dela com eles está tão forte que ela já consegue se comunicar com eles em outros lugares, mesmo que não sejam tão reservados quanto o quarto.

Acho que qualquer dia Célia não vai querer voltar de sua palestra. Ela tem-se interessado muito mais pela vida invisível que pela visível, porém, antes de atravessar aquele portal, ela precisar presentear alguém com aquele móvel, para que sua energia continue iluminando a escuridão da curiosidade e da dúvida.

O móvel é um portal que conduz ao ontem, para que o amanhã seja menos triste. Hoje, ontem e amanhã. Isso é importante do lado de cá. Do lado de lá, não. Eles são a mesma coisa. Célia está saindo do quarto. Tive medo que ela atravessasse para lá. Não quero que me veja escrevendo. Acho que vai me contar algo sobre sua última experiência. Caso saiba de algo novo, escreverei mais tarde...

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