quarta-feira, 1 de maio de 2013

Direito de Resistência

INTRODUÇÃO

“Quando o governo viola os direitos do Povo, a revolta é para o Povo e para cada agrupamento do Povo o mais sagrado dos direitos e o mais indispensáveis dos deveres”.

(Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1793, Art. 35)

Ao longo da história universal, são inúmeros os casos de governos e agentes públicos que, ignorando a legitimidade de seus atos ou a opinião do povo, agem com o objetivo de atender a seus próprios interesses, ferindo o sentimento de democracia. Se por um lado o povo muitas vezes assistiu de forma submissa à tirania, por outro são dignos de menção aqueles em que, ciente de seu poder de mobilização, o povo subjugado conscientizou-se de seu poder e mudou o rumo de sua própria vida e de seu país. Haja vista os exemplos das revoluções liberais entre os séculos XVIII e XIX.

Com maior ou menor intensidade, com ou sem o uso da força, o indivíduo e a coletividade, depois de ferido um direito primário, podem mobilizar-se e lutar pela mudança. Assim, o governo ilegítimo pode ser substituído e as práticas às vezes legais, mas injustas, podem ser modificadas.

Este trabalho tem o objetivo de estudar brevemente o direito de resistência a essas práticas injustas. Para isso, na primeira parte, define-se o que seria direito de resistência e apresenta-se sua incidência ao longo de momentos da história mundial, bem como sua classificação. Na sequência, considera-se a abordagem de Bobbio e Locke em relação ao tema e escolhe-se o direito de greve para analisar a jurisprudência do STF. Na segunda parte, analisa-se o filme Tropa de Elite II sob a perspectiva da objeção de consciência, um dos tipos de exercício do direito de resistência.

1. DIREITO DE RESISTÊNCIA

Diante de um governo não democrático ou de um inicialmente democrático, mas que com o tempo tornou-se antidemocrático, os povos têm a faculdade de resistir. O direito de resistência admite inclusive o uso da força para atingir o objetivo de derrubar e substituir o governo ilegítimo por um legítimo, garantindo, como consequência, a manutenção das práticas democráticas.

Na Antiguidade já se falava sobre o direito de resistência a um governo tirânico, que justificaria até mesmo a morte do governante. Platão já discorria sobre a possibilidade de o povo defender-se de um governo tirânico e injusto. Depois daquele filósofo, outros autores trataram do mesmo assunto, como São Isidoro de Sevilha e São Tomás de Aquino.

No final do século XIX, o direito de resistência foi incluído explicitamente na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa e implicitamente na Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776), que declara:
[...] todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade. Que a fim de assegurar esses direitos, governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados; que, sempre que qualquer forma de governo se torne destrutiva de tais fins, cabe ao povo o direito de alterá-la ou aboli-la e instituir novo governo [...].


Na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), esse direito não é reconhecido explicitamente, mas implicitamente em seu preâmbulo: “Considerando que é essencial, para que o homem não seja obrigado a recorrer, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão, que os direitos humanos sejam protegidos pelo estado de direito”.

Por sua vez, a Constituição da República Portuguesa (1976), em seu art. 21, na parte que trata dos direitos e deveres fundamentais, afirma que “Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública”. Dito isso em linhas gerais, a seguir se verá a classificação do direito de resistência.

1.1 Classificação do direito de resistência

Segundo a classificação do Prof. José Carlos Buzanello, o direito de resistência seria gênero, tendo como espécies a objeção de consciência; a greve; a desobediência civil; o direito à revolução; e o princípio da autodeterminação dos povos (BUZANELLO, p. 17).

1.2.1 A objeção de consciência

Ocorre objeção de consciência quando um indivíduo se recusa a cumprir deveres conflitantes com suas convicções morais, políticas ou filosóficas, ignorando uma obrigação jurídica imposta a todos pelo Estado. Na objeção de consciência existe razoável nível de consciência, com alguma publicidade e sem agitação, com vistas a um tratamento alternativo ou alterações na lei.

Observa-se que a própria Constituição Federal de 1988 (CF) prevê a objeção da consciência, apresentando duas perspectivas: a primeira é uma recusa genérica de consciência (art. 5º, VIII, CF) e a segunda é uma recusa restritiva em relação ao serviço militar (art. 143, § 1°, CF).

1.2.2 O direito de greve

Quando trabalhadores entendem que seus direitos não estão sendo devidamente respeitados ou quando reivindicam novos direitos, pode-se, de forma organizada, exercer o direito de greve política. Ressalta-se que essa é uma medida de resistência lícita excepcional, semelhante ao estado de necessidade e à legítima defesa, por exemplo.

O art. 9º da Constituição da República assegura aos trabalhadores o direito de greve, esclarecendo que compete a eles a decisão do melhor momento de exercê-lo e dos interesses em questão e que os possíveis abusos podem ser punidos pela lei. Porém, há atividades e serviços essenciais que, dada sua relevância, apresentam regras próprias em relação à greve.

1.2.3 A desobediência civil

A desobediência civil é uma forma indireta de participação da sociedade, pois não possui participação suficiente junto às esferas do Estado para tornar-se ente político legítimo. Com isso, ocorre desconsideração da legitimidade de uma autoridade pública ou uma lei. Entre as propriedades da desobediência civil, encontram-se: não violência e ações públicas de caráter coletivo; sentimento de injustiça em relação à lei ou uma decisão por meio de pressão junto aos órgãos de decisão do governo; e propostas de reforma jurídica e política. Nota-se que não se pretende exatamente que o governo seja derrubado, mas que suas práticas sejam substituídas.

Em uma perspectiva direta, a desobediência civil se dá quando as leis do Estado são desafiadas de forma aberta (p. ex., campanhas públicas contra a discriminação racial nos EUA e na África do Sul, ou a campanha das Diretas Já, no Brasil). Em uma perspectiva indireta, ataques a leis isoladas desafiam as estratégias do Estado, sendo executados para mostrar publicamente a injustiça da lei e induzir o legislador a revogá-la. (p. ex., o movimento dos sem terra, que desafia a lei de proteção à propriedade privada e solicita a reforma agrária).

O art. 5º, § 2°, da Constituição brasileira assegura que os direitos e as garantias previstos em seu texto “não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Entre os quais, destacam-se sobretudo o princípio da proporcionalidade e o da solidariedade.

1.2.4 A autodeterminação dos povos

As nações podem organizar-se livre e politicamente, assegurando sua soberania, a isso se chama autodeterminação dos povos. Assim, escolhe-se a forma de governo (República ou Monarquia) e o sistema de governo (Presidencialismo, Parlamentarismo, Semipresidencialismo) de sua preferência. O Pacto Fundamental assegura que a autodeterminação dos povos é um princípio político de direito internacional (art. 4º, III, CF).

1.2.5 O direito à revolução

Quando um povo se sente extremamente prejudicado pela tirania de um governo autoritário, existe o direito à revolução, mesmo que para isso a violência seja utilizada. Destaca-se que a negação disso seria um atentado à dignidade humana (BUZANELLO, p. 20). Por entender que o governo ilegítimo passou dos limites, o povo pode fazer uso da força para reivindicar seus direitos.

Houve importantes movimentos revolucionários que afirmaram e justificaram o exercício do direito de resistência por meio da revolução, entre eles encontram-se:

• A Revolução Gloriosa: o direito de rebelião fundamentou a defesa filosófica da derrota e substituição de Jaime II por Guilherme III, pelo parlamento do Reino Unido (1688);

• A Revolução Americana: o direito de resistência ocuparia um papel principal nos escritos dos revolucionários norte-americanos. Além disso, foi citado na Declaração de Independência dos Estados Unidos, quando um grupo de representantes de vários estados assinou uma declaração de independência em relação à Inglaterra. Segundo a declaração, a lei natural assegura que o povo está dotado pelo Criador de certos direitos inalienáveis e pode alterar ou abolir um governo que destrua esses direitos;

• A Revolução Francesa: o direito de resistência também foi incluído na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) durante a Revolução Francesa, assim como na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1793.

1.2 Bobbio, Locke e o direito de resistência

Entende-se que o direito de resistência está intimamente relacionado aos direitos fundamentais e aos direitos humanos, assim, entre os autores que trataram dessa perspectiva, destacam-se aqui as posições de Bobbio e de Locke. O primeiro fez distinção entre direitos do homem unicamente naturais (equivalentes aos direitos humanos) e direitos do homem positivados (equivalentes aos direitos fundamentais), ensinando que “quando os direitos do homem eram considerados unicamente como direitos naturais, a única defesa possível contra a sua violação pelo Estado era um direito igualmente natural, o chamado direito de resistência” (BOBBIO, 1992, pp. 31, 32).

Locke, segundo a obra intitulada Two treatises of government, entende que repudiar um poder imposto pela força e não pelo direito, apesar de ser chamado de rebelião, não se trata de uma ofensa a Deus, mas é uma permissão Sua e tem Sua aprovação (LOCKE, 2004. § 196). Assim, afirma-se que a diferença entre um rei legítimo e um tirano é que o primeiro pensa que o povo se destina unicamente a satisfazer seus desejos, e o segundo reconhece ter sido elevado a tal dignidade para a promoção da riqueza e da propriedade do povo (idem, op. cit., § 200).

1.3 O direito de resistência segundo a jurisprudência

Por ser muito presente no dia a dia da sociedade, entre as formas de exercício do direito de resistência, escolheu-se o direito de greve para se pesquisar o ponto de vista do STF, ao interpretar o art. 9º da Carta Magna. Em relação ao caput do artigo, o Supremo Tribunal Federal (STF) entende que
A simples adesão à greve não constitui falta grave. (Súmula 316) O direito à greve não é absoluto, devendo a categoria observar os parâmetros legais de regência. (...) Descabe falar em transgressão à Carta da República quando o indeferimento da garantia de emprego decorre do fato de se haver enquadrado a greve como ilegal. (RE 184.083, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 7-11-2000, Segunda Turma, DJ de 18-5-2001). Saber se houve simples adesão à greve ou participação efetiva dos empregados no movimento paredista, capaz de sustentar a rescisão unilateral do contrato de trabalho, implica revolvimento da matéria fático-probatória, inadmissível no extraordinário. (RE 252.876-AgR, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 29-2-2000, Segunda Turma, DJ de 19-5-2000).


O § 1º do referido artigo diz que “a lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade”. Sobre ele, o STF, na MI 708, de relatoria do Min. Gilmar Mendes, afirma que
A disciplina do direito de greve para os trabalhadores em geral, quanto às ‘atividades essenciais’, é especificamente delineada nos arts. 9º a 11 da Lei 7.783/1989. Na hipótese de aplicação dessa legislação geral ao caso específico do direito de greve dos servidores públicos, antes de tudo, afigura-se inegável o conflito existente entre as necessidades mínimas de legislação para o exercício do direito de greve dos servidores públicos civis (CF, art. 9º, caput, c/c art. 37, VII), de um lado, e o direito a serviços públicos adequados e prestados de forma contínua a todos os cidadãos (CF, art. 9º, § 1º), de outro. (MI 708, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 25-10-2007, Plenário, DJE de 31-10-2008.) No mesmo sentido: MI 670, Rel. p/ o ac. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 25-10-2007, Plenário, DJE de 31-10-2008.


Por fim, o § 2º desse art. 9º, ao dizer que os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei, é interpretado pelo STF conforme segue:
O reconhecimento judicial da abusividade do direito de greve e a interpretação do alcance da Lei 7.783/1989 qualificam-se como matérias revestidas de caráter simplesmente ordinário, podendo traduzir, quando muito, situação configuradora de ofensa meramente reflexa ao texto da Constituição, o que basta, por si só, para inviabilizar o conhecimento do recurso extraordinário. (AI 282.682-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 14-5-2002, Segunda Turma, DJ de 21-6-2002).


2. O DIREITO DE RESISTÊNCIA NO FILME TROPA DE ELITE II

No filme Tropa de Elite II pode-se notar uma crítica à forma distorcida e até criminosa como agentes da segurança pública e políticos atuam para garantir e perpetuar seu domínio no poder, especialmente em áreas carentes do Rio de Janeiro, mas com ramificações até no Governo Federal. Critica-se a classe média, o governo, a polícia e obviamente os criminosos.

Mostra-se o lado oculto daqueles que deveriam ser os garantidores da ordem, daqueles que muitas vezes mostram-se como heróis, mas que no fundo são os principais articuladores de uma série de ilícitos. No geral, os personagens preocupam-se com interesses pessoais e têm aparência externa de moralidade com sangue corrupto correndo nas veias.

Esse filme mostra que os problemas de segurança, de coação, de tráfico de drogas e um sem número de irregularidades não são exclusividade dos delinquentes que diariamente povoam os noticiários. Por trás disso existe uma rede muito bem estruturada que envolve desde policiais até a mais alta esfera de poder do País. Portanto, demonstra que a solução para tais problemas da sociedade não é tão simples quanto se pode pensar.

Esse quadro de violência e corrupção torna Roberto Nascimento, interpretado por Wagner Moura, um homem embrutecido, um tanto descrente da boa-fé de seus colegas, subordinados e superiores. Ele tenta trazer de volta a dignidade e a honestidade não só ao BOPE (Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro) como à segurança pública do estado e à política, indiretamente.

Depois de uma operação mal sucedida, o Ten-Cel. Nascimento foi afastado do BOPE. Em seguida, passou a ocupar cargo de Subsecretário do Serviço de Inteligência da Secretaria de Segurança Pública do Estado. Por estar inserido na cúpula de segurança, percebeu que uma solução definitiva estava longe de ser alcançada porque os principais articuladores dos crimes se encontravam naquele lugar.

Nas palavras de José Carlos Buzanello
O direito de resistência, por fim somente se justifica no caso de descumprimento de algum direito primário, (...). É também um direito para se ter direito, isto é, um direito secundário que supõe que seu exercício está em favor do gozo de um direito primário, como a vida, a justiça, a dignidade humana, a propriedade.


Visto isso, optou-se por analisar brevemente o referido filme sob a perspectiva da objeção de consciência, pelo fato de sua realização partir do indivíduo que sozinho, em um primeiro momento, sente-se desobrigado a levar a cabo uma solicitação que não coadune com seus princípios.

Como primeiro exemplo, tem-se a sequência em que, depois de uma rebelião de presos, o BOPE foi autorizado a invadir o presídio, mas apesar disso o personagem Fraga, Irandhir Santos, se dispôs a entrar na cela e resolver o problema de forma pacífica. Havia três posturas possíveis: ignorar o conflito entre as facções e deixar que os bandidos de autoeliminassem; invadir e acabar com o conflito à força; e resolver por meio do diálogo. Esta última foi aplicada e surtiu efeito.

Outro caso seria o do personagem André Matias, vivido por André Ramiro, morto por companheiros de farda, quando tentou desmantelar o esquema de corrupção e exploração de serviços em comunidade carente do RJ. Apesar dos muitos corruptos e corruptores que circulam nos meios policiais e políticos, ainda há os que se recusam a fazer parte de esquemas que, apesar de serem travestidos de legalidade, não representam a melhor atitude na busca dos interesses da coletividade.

Como último exemplo, em depoimento na Assembleia Legislativa, o Ten-Cel. Nascimento disse que quando um policial mata não puxa o gatilho sozinho e que metade dos deputados estaduais, pelo menos, deveria estar na cadeia. Nessa ocasião, apontou o deputado Fortunato como chefe de uma das principais milícias. A denúncia, o não silenciar-se, foi uma postura que contrariou a “lógica do omitir-se” da cúpula policial e política do estado.

CONCLUSÃO

É sempre produtiva a seguinte pergunta: Os destinatários do sistema jurídico teriam um dever moral de aceitar o que está prescrito pelo simples fato de ser lei, independentemente de seu conteúdo? Se fosse assim, a moral seria um fundamento do direito. Sobre isso o positivismo possui simultaneamente duas vertentes: a positivista moral entenderia que, por mais imoral que seja, o que está prescrito não perde sua eficácia social; já a positivista neutral diria que os deveres jurídicos, os únicos estabelecidos pelo direito, não deveriam chocar-se com os deveres morais, mas podem fazê-lo (ALEXY, 2005).

Segundo Locke (2004, § 232), quem usa a força desvinculada do direito se coloca em estado de guerra contra as vítimas dessa força, assim os vínculos antigos se rompem, os direitos são interrompidos e todos têm o direito de se defender e resistir à agressão. Portanto, independentemente da positivação, como ocorre na Constituição Portuguesa e em outros documentos citados, o direito de resistência é algo intrínseco ao ser humano.

Entende-se, porém, que esse fato também poderia produzir um quadro de anomia, caso se considere a ausência do Estado e a possibilidade de cada um ser o que quiser, escolhendo seus próprios valores na sociedade em que vive. Para que isso não ocorra, destaca-se a necessidade de o direito positivo ser definido com base na legalidade do ordenamento e na eficácia social.

O autor do artigo que serviu de base para a classificação do direito de resistência apresentada neste trabalho defende que o direito de resistência seja incluído na Constituição por meio de emenda constitucional e isso parece apropriado. Além de garantir o direito, seria uma espécie de orientação para o povo, para que este não se subjugasse a um governo injusto e não permitisse que uma série de direitos seus fosse ignorada.

Finalizando, entende-se que existe um valor moral que direciona os indivíduos a obedecerem ao direito, desde que este não seja extremamente injusto, viole outros direitos ou esteja desvinculado da moral. Apesar disso, não é simples a tarefa de determinar o que seria extremamente injusto, dada a multiplicidade de dilemas morais que envolvem a sociedade. Assim, acredita-se que a legitimidade do direito de resistência e seu limite de atuação ainda tem espaço para muita discussão, dado o difícil tracejar do limite entre direito e moral, entre justiça e injustiça.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXY, Robert. La Institucionalización de La Justicia. Granada: LAEL, 2005. pp. 17-29.

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. pp. 31,32.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: . Acesso em: 16 dez. 2012.

BUZANELLO, José Carlos. Direito de Resistência. Disponível em: . Acesso em: 15 dez. 2012.

DECLARAÇÃO dos Direitos do Homem e do Cidadão (1793). Disponível em: . Acesso em: 15 dez. 2012.

DECLARAÇÃO Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: . Acesso em: 15 dez. 2012.

DERECHO de rebelión. Disponível em: . Acesso em: 15 dez. 2012.

LOCKE, John. Two treatises of government: a critical edition with an introduction and notes by Peter Laslett. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.

MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 1997. p. 39. In: SANTOS, Vanessa Flain dos. Direitos Fundamentais e Direitos Humanos. Disponível em: < http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/files/anexos/14739-14740-1-PB.htm>. Acesso em: 16 dez. 2012.

PORTUGAL. Constituição da República Portuguesa. Disponível em: . Acesso em: 16 dez. 2012.

Abuso de Direito

INTRODUÇÃO

Segundo Aristóteles, em A política, o homem é um animal gregário por excelência, ou seja, não vive sozinho, mas em constante relação com seus pares. Para aquele filósofo grego, as pessoas dependem umas das outras para sua própria subsistência e, desde seu surgimento, sempre viveram em grupos. Assim, criaram-se grupos familiares que evoluíram até alcançar o estágio de sociedade organizada (RICCITELLI, p. 1, 2007).

Dando um salto no tempo, é patente que a vida em sociedade exige dos indivíduos regras, positivadas ou não, que regulem condições mínimas para a boa convivência. Em um mesmo lugar, em um mesmo momento, os indivíduos querem que o exercício de seus direitos seja garantido. Porém, pelo fato de nem sempre terem noção dos limites, não medem a intensidade desse exercício e acabam interferindo na esfera jurídica alheia.

Tendo em vista essa situação, o Código Civil de 2002, no art. 187, afirma que “comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Isso é uma limitação ética que sujeita à reparação civil o indivíduo que, no exercício de um direito, causa mal a outrem. Ou seja, uma tentativa de evitar o desvio de finalidade de um direito.

Percebe-se, com isso, que a lei não se preocupa apenas com o caráter objetivo do exercício de um direito, mas também com o subjetivo. O direito de propriedade, a liberdade de expressão e tantos outros não podem ser utilizados com a intenção de prejudicar alguém, sem proveito para quem os exerce.

Por entender a importância da definição de limites para o convívio em sociedade, este trabalho tem o objetivo de definir abuso de direito segundo a doutrina, analisando o entendimento de dois dos principais doutrinadores nacionais. Além disso, analisar-se-á o Caso Ellwanger, em que o exercício da liberdade de expressão leva seu titular à mais alta corte do País.

1 O ABUSO DE DIREITO E A DOUTRINA

Até a promulgação do Código Civil de 2002, não se podia afirmar que existia uma solução satisfatória para a problemática do abuso de direito. Havia autores, como Marcel Planiol, que enxergavam uma contradição interna na utilização dos termos, pelo fato de a ideia de abuso ser contrária ao direito e o conceito de direito ser avesso à noção de qualquer abuso. Por outro lado, havia o entendimento de que o exercício do direito jamais poderia ser visto como algo ilícito, mesmo que causasse ruína, desgraça ou humilhação a outrem (PEREIRA, 2012, p. 565, 566).

Conforme o ensinamento aristotélico, o ser humano é um animal social. Assim, a união entre os homens é natural, pois o homem é naturalmente carente e necessita de coisas e de outras pessoas para se sentir pleno. Dessa forma, viu-se a necessidade de encontrar um meio-termo, um limite para que os indivíduos conciliassem o exercício de seu direito e o respeito à esfera jurídica alheia, garantindo a boa convivência entre os homens. A doutrina do abuso de direito se firma nesse entendimento.

Segundo Caio Mário (idem, p. 566, 567), o abuso de direito fundamenta-se na regra da relatividade dos direitos; na dosagem do conteúdo do exercício, quando admite que se o titular de um direito exceder o limite regular de seu exercício agirá sem direito; e na configuração do animus nocendi, estabelecendo que o exercício do direito que tem o objetivo de prejudicar alguém deve ser reprimido.

Atualmente, considera-se inadmissível que alguém cause prejuízo evitável a outrem sob alegação de estar exercendo um direito seu, com intuito de fazer o mal e sem proveito próprio. É interessante observar a intenção do sujeito do direito, pelo fato de haver situações em que se causa certo dano a outrem que são perfeitamente lícitas, como a cobrança de uma dívida. Neste caso, o dano ao devedor seria inevitável, pois é intrínseco ao exercício regular e normal do direito.

Carlos Roberto Gonçalves (2009, p. 467, 468) ensina que os romanos entendiam que quem agisse dentro de seu direito não prejudicaria a ninguém. Infelizmente, essa ótica individualista que justificava os excessos e abusos do direito foi aplicada durante anos. Na atualidade, porém, as sociedades civilizadas reconhecem a existência de um dever de não prejudicar a outrem. Contudo, é preciso frisar que nos casos de abuso de direito não ocorre uma violação objetiva dos limites previstos em lei. O que se dá é um desvio da finalidade social a que o direito se destina.

Há inúmeros casos em que se encontra abuso no exercício de um direito. Por exemplo, alguém que, entendendo exercer seu direito de propriedade, transforma seu terreno situado em área residencial em um depósito de lixo, com a intenção de desvalorizar os demais imóveis para uma futura possibilidade de compra. O direito do proprietário não pode colocar em risco a saúde da vizinhança, do solo, do subsolo e do ar (art. 1.228, §§ 1º, 2º, do CC).

A mesma constituição que garante o direito de propriedade estabelece que a propriedade deve atender à sua função social (art. 5º, XXII, XXIII, da CF; art. 5º, da LInDB). Assim, em uma ponderação entre o direito de propriedade e a dignidade da vizinhança, prevalecerá esta última. Nesse caso, o interesse existencial dos demais moradores se sobreporá ao econômico do proprietário do terreno.

Entendendo que o abuso de direito tem relevância na maioria dos campos do direito, por ser uma forma de repressão à aplicação antissocial de direitos subjetivos (GONÇALVES, 2009, p. 468), na sequência, pretende-se analisar o Caso Ellwanger, em que alguém, alegando exercer sua liberdade de expressão, divulga material de conteúdo racista. Dessa forma, perceber-se-á como as opiniões dos ministros do STF se dividiram ao julgar os limites da liberdade de expressão, garantida pelos arts. 5º, IV, IX; 220, caput, da Constituição Federal.

2. CASO ELLWANGER: UM CONFRONTO ENTRE A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E O RACISMO*

2.1 Apresentação do caso

Em 1986 o Movimento Popular Anti Racista (MOPAR), formado pelo movimento judeu, movimento negro e movimento de justiça e direitos humanos, entrou com uma denúncia contra o editor gaúcho Siegfried Ellwanger Castan, alegando o conteúdo racista de suas obras, dizendo que elas denegriam a imagem do povo judeu e lhe aplicavam um valor pejorativo. Em 1990 uma nova denúncia foi realizada, instaurando-se inquérito policial que foi remetido ao Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul (MP-RS) e recebido em 1991.

O MP-RS determinou a busca e apreensão dos exemplares que continham o conteúdo racista, entretanto Ellwanger não acatou tal decisão, e em 1996 foi flagrado vendendo os exemplares na Feira do Livro de Porto Alegre, o que gerou uma nova denúncia, que foi recebida em 1998. A defesa sustentou que tais obras do escritor não tinham conteúdo racista, e sim, um cunho ideológico contra o movimento sionista internacional. Porém, a defesa não obteve sucesso na sustentação e o escritor foi condenado a dois anos de reclusão.

Em dezembro de 2002, a defesa de Ellwanger ajuizou pedido de habeas corpus no Supremo Tribunal Federal (STF), como recurso à condenação imposta pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em 1991, pela publicação de livros como “Holocausto judeu ou alemão? Nos bastidores da mentira do século” e “Os Conquistadores do Mundo: os verdadeiros criminosos de guerra e Hitler, culpado ou inocente?”. O pedido de habeas corpus foi negado e a condenação foi reiterada pelo STF em 2003.

2.2 O entendimento do STF

Para chegar à decisão, os ministros do STF, basicamente, discutiram o conceito de racismo, liberdade de expressão e manifestação do pensamento individual. Naquela ocasião, o relator Moreira Alves e os ministros Ayres Brito e Marco Aurélio foram favoráveis ao habeas corpus, por entenderem que o povo judeu não pode ser considerado uma raça.

Além disso, segundo eles haveria uma diferença entre a divulgação de ideias de teor antissemita e a incitação de práticas antissemitas. Dessa forma, o editor não poderia ser condenado por ter feito uma revisão histórica do conflito entre alemães e judeus na Segunda Grande Guerra. No entanto, a discussão desenvolvida pela maioria dos ministros não privilegiou a interpretação gramatical ou literal do texto constitucional a respeito do racismo (arts. 4º, VII; 5º, XLII, CF).

Para sustentar seu voto, o ministro Maurício Corrêa, v.g., argumentou que o conceito convencional de raça foi abolido pela genética e que a intolerância humana é que ainda divide seres humanos em raças. Já o ministro Celso de Mello, por entender que a única raça existente é a espécie humana, afirmou que houve ofensa à dignidade dos judeus por razões de cunho racista. Gilmar Mendes, por sua vez, também indeferiu o pedido, por compreender que em uma sociedade plural não se pode priorizar a liberdade de expressão em detrimento da igualdade e da dignidade humana, daí a previsão constitucional de inafiançabilidade e imprescritibilidade para o crime de racismo (art. 5º, XLII, CF).

Ao final do julgamento, o STF entendeu o racismo um conceito político-social, que se desenvolveu ao longo do tempo e acabou gerando discriminação e segregação. Logo, no entendimento dos ministros do STF o antissemitismo presente nas obras do escritor foi considerado como incentivo ao racismo, sendo, portanto, aplicáveis as sanções penais previstas. Assim, o STF negou o pedido por 8 votos a 3, considerando que o ato de Ellwanger tinha sido típico do crime de racismo e que a divulgação das obras em questão poderia pôr em risco a segurança dos judeus residentes no Brasil (BRASIL, 2001).

2.3 O que é liberdade de expressão?

A liberdade de expressão é o direito de manifestação e exteriorização do pensamento sem prévia censura, sem nenhum tipo de opressão por parte do Estado ou de outros, apresentando-se assim como um dos direitos mais importantes em um Estado Democrático de Direito (art. 5º, IV, da CF). Enfatiza-se que o homem não consegue viver isolado, pois é um ser social, isto é, possui intrinsecamente a necessidade de viver em sociedade, de se relacionar, trocando ideias e opiniões com outros homens. Por isso, essa liberdade é fundamental e é tutelada pela Constituição.

Não obstante, sob a ótica do ministro Marco Aurélio, a necessidade de sempre expressar um pensamento politicamente correto seria uma espécie de tirania. Afirmou ainda que as pessoas não podem ser obrigadas a pensar da mesma forma que as outras. Assim, define-se liberdade de expressão como o direito de expressar um pensamento independentemente de fazer parte de uma linha contramajoritária.

O indivíduo, obviamente, deve sujeitar-se ao direito de resposta dos possíveis prejudicados, proporcional ao agravo, e ao pagamento de indenização caso haja dano material, moral ou à imagem (art. 5º, V, da CF). Além disso, nos casos em que a suposta liberdade de expressão configurar um racismo disfarçado, em função de raça, cor, etnia, religião, origem ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência, há previsão de pena de reclusão (art. 5º, XLII, da CF; art. 140, § 3º, do CP).

2.4 Quais seriam os limites das restrições à liberdade de expressão?

Tal indagação foi respondia com os votos dos ministros Celso de Mello e Gilmar Mendes, ao dizerem que a liberdade de expressão, apesar de ser uma garantia constitucional, não poderia ter um caráter absoluto, tendo assim limites jurídicos, pois não poderia a partir do uso da liberdade de expressão justificar um ato que é considerado um ilícito penal, como o racismo.

O princípio da dignidade da pessoa humana é um valor moral e espiritual inerente à pessoa e constitui o princípio máximo em um Estado Democrático de Direito, sendo inalienável e irrenunciável. Immanuel Kant foi o responsável pela formulação deste pensamento ao dizer que o indivíduo deveria ser tratado como um fim em si mesmo, e não como um meio, um objeto, protegendo assim o ser humano contra qualquer ato de cunho degradante e desumano, proporcionando a garantia de uma vida saudável e digna. Assim sendo, a dignidade da pessoa humana é um dos mais importantes bens jurídicos tutelados pelo ordenamento.

Considerando que as normas jurídicas constitucionais são hierarquicamente equiparadas, quando há colisão entre duas ou mais delas, os valores em questão devem ser harmonizados, equilibrando-os da melhor maneira possível. Além disso, quem aplica a lei pode usar o princípio da proporcionalidade como um instrumento para tomar a decisão mais adequada (LIMA, 2002). Dessa forma, entende-se que a liberdade de expressão de um indivíduo não pode chocar-se com o princípio da dignidade da pessoa humana. Portanto, a decisão do STF em relação ao Caso Ellwanger foi acertada.

CONCLUSÃO

A vida em sociedade impõe que os seres humanos busquem a boa convivência e encontrem maneiras de garantir o exercício de direitos de forma que não haja prejuízo alheio. A máxima que diz “Meu direito começa quando o seu termina” é muito difundida, mas perigosa, por não ser possível precisar os limites que o outro se impôs no exercício de um direito, tampouco sua finalidade. Assim, seria possível que o direito de um indivíduo nunca viesse a ser exercido, por ser o direito do outro muito extenso.

Com o objetivo de solucionar conflitos, tendo em vista o ideal de justiça, o Código Civil, em seu art. 187, afirma praticar ato ilícito quem exceder de forma manifesta os limites impostos, a finalidade econômica ou social, no exercício de um direito. Entende-se então que, diferentemente do expresso na máxima acima, o direito dos indivíduos devem coexistir de forma harmoniosa. Assim, não se justifica que a coletividade seja prejudicada, ainda que moralmente, pela ação ou omissão de alguém que ignora os limites impostos à prática de um direito.

A análise do Caso Ellwanger foi uma boa oportunidade de refletir sobre a forma como alguns indivíduos exercem seus direitos. A garantia constitucional de liberdade de expressão não pode ser subterfúgio para agredir a honra, a dignidade alheia. A Constituição de 1988 garante a liberdade de expressão, mas também garante a proteção à honra. Quando se ponderam as duas garantias, a honra pesa mais. Ou seja, em nome da honra alheia não se deve propagar ideias ofensivas, sob pena de responder judicialmente, como ocorrido no caso analisado.

Como o bom senso não é algo que possa ser medido e dificilmente alguém reconhece não tê-lo, faz-se necessário que o direito apresente limitações ao exercício dos direitos, para garantir a boa convivência humana e para que todos tenham minimamente a garantia de exercício de direitos. É um círculo virtuoso, em que o direito de alguém é limitado para garantir o direito de outrem e o deste é limitado para garantir o daquele.

Espera-se que este trabalho tenha sido útil para demonstrar que, pelo fato de se viver em sociedade, não se pode fazer nada irresponsavelmente. Ainda que não se viole o direito de forma objetiva, deve-se verificar se subjetivamente há respeito à coletividade. Por fim, entendeu-se que o direito não deve caminhar afastado da moral.

*BRASIL. Supremo Tribunal Federal. STF nega Habeas Corpus a editor de livros condenado por racismo contra judeus. 2001. Disponível em: . Acesso em: 28 dez. 2012.

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