segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Se quisermos podemos ser criança

Na data em que comemoramos o dia das crianças, lembro-me das palavras do Mestre Jesus na ocasião em que levaram crianças para que Ele as tocasse e os discípulos tentaram impedi-las de se aproximarem dele. Jesus indignou-se e disse-lhes que não deveriam impedi-las, porque o Reino de Deus era das crianças. Depois disso, as tomou nos braços e as abençoou.

Como de costume, o Mestre falou em parábolas, que são narrações figurativas nas quais, por meio de comparação, os elementos evocam outras realidades, tanto fantásticas, quanto reais. A característica de uma parábola é ser protagonizada por humanos para ilustrar lições de ética por vias simbólicas ou indiretas.

É lógico que o Reino de Deus não foi criado apenas para crianças — se estas forem vistas apenas como humanos com poucos anos de idade — mesmo porque, com o avanço da medicina e com a melhora de alguns aspectos sociais, a cada ano que passa o número de óbitos intantis tem diminuído. Jesus quis dizer que os céus estão reservados para aqueles que têm alguma semelhança com os pequeninos, mas qual semelhança seria essa?

Se observarmos uma criança, um pequeno humano que começa a dar seus primeiros passos e a se relacionar com o próximo, perceberemos que não são simplesmente seres imaturos ou ingênuos; são seres que ainda possuem as qualidades que perdemos há anos e que são requisitadas por Deus para que tenhamos acesso a seu Reino de paz e repouso.

Com o passar dos anos, acabamos sendo convencidos de que devemos fazer o mal porque todo mundo faz; mas, se acreditarmos nisso, será o mal que vencerá o bem e não o contrário. Quem quiser ter Deus e os santos como companhia em uma vida eterna, deverá se fazer como um daqueles pequenos de que falou Jesus. Das qualidades infantis que merecem destaque, talvez as mais importantes sejam a simplicidade, as mãos limpas e o coração puro.

A criança é pura porque nunca viu a corrupção, suas mão são limpas porque nunca fizeram o mal. O adulto já teve essas experiências, porém, voluntariamente, deve buscar sua condição anterior e tentar a cada dia deixar de fazer uma coisa ruim. Entenda-se coisa ruim como algo que prejudica o próximo ou a si próprio; logo, desagrada ao Criador de nós todos.

A perfeição não existe, entretanto devemos nos convencer de que temos muito a ser mudado e que precisamos dessa mudança para melhorar nosso relacionamento com o próximo, conosco e, consequentemente, com Deus. Dizer que não erramos é mentira. Pensar que não precisamos de mudança é loucura. Rejeitar a vida eterna ao lado de Deus e dos demais fiéis é burrice. Devemos querer e vale a pena tentar.

Há quem pense que Deus não exite, tampouco Sua morada. Dessa forma, esse policiamento, essa busca de aperfeiçoamento não seriam necessários. Gosto de fazer uma pequena reflexão. Suponhamos que alguém que tenha se policiado por boa parte de sua vida e que reconheça sua imperfeição morra e perceba que o outro lado não existe, que tudo o que lhe disseram é mentira, puro fruto da imaginação humana. Caso exista alguma posibilidade de reflexão, essa pessoa se arrependerá de não ter se permitido algumas coisas, mas jamais se arrependerá do bom relacionamento com o próximo, consigo e dos bons frutos colhidos.

Continuemos a reflexão e imaginemos situação oposta. Pensemos em alguém que nunca tenha se policiado, que nunca tenha se privado de nada, por acreditar que não existe alguém que requeira de nós boa conduta. Suponhamos que esse indivíduo dê seu último suspiro aqui e se prepare para o nada, para a escuridão. Para essa pessoa não existe o outro lado, tudo se resume a esta vida, o resto é ilusão. Pois bem, se não encontrar nada do outro lado, ela estava certa; mas, e se ela fechar os olhos aqui e abrir em outra vida? Já pensou o que poderia acontecer se essa pessoa que nunca acreditou em nada se deparasse com o Criador?

Caso essa pessoa tivesse tentado fazer coisas boas, evitar as ruins e tivesse sempre o desejo de melhorar e de ajudar o próximo, com certeza a bondade divina acharia alguma forma de abrir as portas do paraíso e receber quem, apesar de não ter conseguido, sempre buscou o bem.

Da mesma forma que nunca ninguém voltou para dizer que o céu existe, nunca ninguém voltou para dizer que não existe outra vida ou vida eterna. É bom não arriscar! Contemos com a possibilidade de nos encontramos com alguém que é mais poderoso que nós e que pode nos requerer bom comportamento nesta vida.

Voltemos às crianças. A cada manhã recebemos o convite da vida para voltarmos a ser crianças que não fazem mal para si, nem para o próximo, nem para a natureza. Todo dia é dia de recomeçar, de reescrever nossa história, de nascer de novo. Não sejamos otimistas ao extremo, a ponto de pensar que eliminando o que consideramos ruim em nossas vidas hoje seremos perfeitos. À proporção que melhorarmos, veremos que podemos melhorar mais. Dia após dia, em um exercício contínuo. Não acredito que conseguiríamos nos livrar de tudo o que precisamos, mas, se conseguíssemos, o próprio Criador nos tomaria para si, o que não seria de todo ruim.

Convite feito. Voltemos a ser criança! Como sabemos, não há quem resista ao olhar das crianças e dizem que o mundo está nas mãos delas. Se voltarmos a ser criança voluntariamente, dividiremos essa responsabilidade com elas e faremos o que deve ser feito para o progresso da humanidade mais rapidamente. Feliz dia das crianças a todos nós, que, mesmo tendo muitos anos, acreditamos na vida e que o amanhã será bem melhor.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

O medo da gripe

Em tempos de gripe suína, há que se tomar cuidado com hábitos que até pouco tempo passavam despercebidos por boa parte da população. Devemos evitar, dizem os especialistas, o aperto de mão do formal; o beijo no rosto do respeitoso; o abraço do falso; os dois beijos dos amigos e os três beijos dos que querem casar. Há quem diga: “São três beijinhos pra casar!”. Para casar com quem, com a pessoa beijada ou com outra?! Não importa, costume é costume.

Se quisermos nos prevenir contra a gripe suína, a gripe A H1N1, ou seja lá o que for, precisamos evitar atividades que nos obriguem a ficar em ambientes fechados ou que nos obriguem a compartilhar utensílios com alguém, pelo risco de entrar em contato com algum fluido corporal contaminado pelo vírus.

Primeiro, não sei para que a Organização Mundial da Saúde mudou o nome da gripe. A nova gripe com nome de suína não fez com que eu deixasse de comer meu carré com salada. Já que vivemos em um mundo globalizado e valorizamos tanto a cultura norte-americana, deveriam ter batizado a nova epidemia com o nome de gripe do pig. Segundo, será que todos conhecem o significado de “fluidos corporais”? O povão conhece os fluidos corporais de vista, mas não por esse nome... De qualquer modo, vida que segue.

Sei que nessas horas aparecem vários especialistas. Devemos dar-lhes crédito, mas não podemos nos desesperar. Conheço pessoas que não oferecem mais um golinho do refrigerante ou cerveja por medo da gripe; não vão ao cinema ou teatro por medo da gripe; desmancharam com a namorada por medo da gripe... Por favor, não é possível que todo lugar fechado e todo fluido passe gripe! Como não sou médico ou epidemiologista, isso não é da minha alçada. Deixe para lá, devo preocupar-me com o acento agudo no i do suína, só isso.

Amigos, só sei dizer que a prima pobre da gripe espanhola está dando o que falar. Para você ter uma ideia, ela, a gripe, foi a culpada por mais um arranca-rabo da Linha 2 do metrô.

Há uns 15 dias eu estava naquela lata de sardinha chamada Linha 2, rezando para chegar logo ao meu destino. Gosto de ler na condução, mas com o vagão lotado uma pessoa que está em pé dificilmente consegue ler alguma coisa. Sobra uma das mãos para segurar o livro, mas falta espaço para mantê-lo afastado do nariz. Como não se tem paisagem para se ver através da janela, só nos resta acompanhar as coisas que acontecem dentro do próprio vagão.

Alguns comportamentos são de praxe, comuns: pessoas que não vão descer, mas ficam paradas na porta; pessoas que carregam a casa dentro de suas enormes bolsas; gente que não sabe o que é um desodorante há tempo, etc. Mas o mais interessante e diversificado é o papo dos passageiros. São reclamações de marido, esposa, chefe e vizinho; planos para festas e viagens; debates acadêmicos e outros. De todos, o que mais atrai audiência e desperta do sono é o bate-boca. Quando as ofensas e ameaças começam o sono termina. Os palavrões chegam e nossa estação, não; mas não importa, agora temos diversão.

Realmente não se deve mexer com quem está quieto. Uma senhora cheia de bolsas já estava no vagão quando entrei. Ela segurava uma bolsa com a mão esquerda e se segurava com a outra. Com as pernas ela apoiava mais umas duas bolsas que estavam no chão. No meio do trajeto, um dos assentos perto da mulher ficou vago. Como ela não mostrou a intenção de se sentar, mais do que depressa um cara se espremeu, passou pelas pessoas, pela mulher e bolsas e sentou. Não critico a pressa para conseguir o lugar, apesar de ele ter empurrado todo mundo, mas que ele podia ter saído do metrô sem ouvir o que ouviu, podia.

Do nada, a mulher das bolsas espirrou. Tudo bem que ela não colocou a mão na frente e uma coisinha ou outra caiu no cara que acabara de se sentar, mas, poxa, não era uma bomba atômica; era apenas um espirro. Tudo bem que poderia ser uma bomba de gripe suína, mas temos que acreditar que lá em cima existe alguém olhando por nós também, gente.

Os demais passageiros se afastaram, esperando por um próximo tiro certeiro, quer dizer, espirro, mas ele não veio. A mulher ficou sem graça. Ninguém espirra porque quer, muito menos nestes dias de epidemia em que as pessoas olham quem espirra como uma fonte de bactérias ou vírus. Depois de um tempinho todos ficaram confiantes e voltaram para seu lugar, mas eis que o cara que fora alvo dos perdigotos olhou para a mulher e começou a alfinetar.

— O lencinho! — E a mulher fez que não era com ela. Aí o cara reforçou.
— Quando for assim, antes de cuspir nos outros, a senhora pega um lenço ou bota a mão na frente!

Naquele vagão não havia lugar para mais nada. A mulher procurou lugar para enfiar a cara e não achou.

— O senhor acha que espirrei por querer?! Alguém espirra porque quer?! — E o tom de voz foi aumentando.

O cara podia ter ficado calado. A discussão estava no um a um, mas ele não quis...

— Não é possível que dentro dessas bolsas todas a senhora não tenha um lencinho... — Dizendo isso ele assinou sua sentença. A esse momento eu já tinha até esquecido da estação em que desceria. Quem estava com seu MP3 no ouvido tratou de tirá-lo depois que as caras e bocas começaram.

— Sabe de uma coisa, moço, eu não estou gripada, não. Isso deve ser alergia. Olha que eu estava boazinha, mas, de repente, comecei a sentir cheiro de roupa velha e guardada. Não foi o senhor quando passou, não!? Meu problema não foi falta de lenço. O senhor não está vendo que só tenho duas mãos? Com uma seguro a bolsa e com a outra me seguro.

O homem ficou vermelho de raiva, e a mulher falou tudo o mais que lhe veio à mente, até que o cara resolveu descer e a paz voltou a reinar no vagão. Como não havia mais nada para me distrair, fui obrigado a retornar à realidade e tomar cuidado para não passar da minha estação. Pois é, o medo da gripe pode causar mais problemas do que eu imaginava.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Ainda não é a gota d'água

“O pai e a filha vão colher a tempestade
A ira dos centauros e de pomba-gira
levará seus corpos a crepitar na pira
e suas almas a vagar na eternidade
Os dois vão pagar o resgate dos meus ais
Para tanto invoco o testemunho de Deus,
a justiça de Têmis e a benção dos céus,
os cavalos de São Jorge e seus marechais,
Hécate, feiticeira das encruzilhadas,
padroeira da magia, deusa-demônia,
falange de ogum, sintagmas da Macedônia,
suas duzentas e cinquenta e seis espadas,
mago negro das trevas, flecha incendiária,
Lambrego, Canheta, Tinhoso, Nunca-visto,
fazei desta fiel serva de Jesus Cristo
de todas as criaturas a mais sanguinária
Você, Salamandra, vai chegar sua vez
Oxumaré de acordo com mãe Afrodite
vão preparar um filtro que lhe dá cistite,
corrimento, sífilis, cancro e frigidez
Eu quero ver sua vida passada a limpo,
Creonte. Conto co’a Virgem e o Padre Eterno,
todos os santos, anjos do céu e do inferno,
eu conto com todos os orixás do Olimpo!”*

Pois bem, se fosse a gota d’água, merecerias ouvir tais palavras e outras mais contra ti. Ainda não é, mas não perco viagem e te deixo meu recado.

As palavras que saem de tua boa trazem ao exterior a podridão que existe dentro de ti. Tentas transformar o mundo em tua volta à semelhança de teu mundo interior, mas não consegues. Teu interior sempre será corrupto e amoral. Tuas últimas vitórias têm sido os seguidores que consegues angariar e arrastar contigo. Nenhum deles consegue superar-te, és invencível nos males que fazes e sabes disso.

Não te desejo o que Joana desejou a Creonte e sua filha Alma, desejo-te o pior dos teus medos: que fiques aprisionado em companhia de ti mesmo. Nada podes livrar-te de ti, por isso foges. Na tentativa de achar acalanto para teu suplício, cerca-te de tolos que te veem um mestre. De fato, és mestre da sordidez e do escracho, alguém que se sente incapaz de aperfeiçoar-se e fazer o bem, por isso, convertes o bem em mal, a verdade em mentira e distorces a mente de quem tem ouvidos para ti. Pena que não consigas convencer-te também.

No fim de teus dias, quando pensares que descansarás dos teus males, aí é que teu sofrimento apresentará nova fase. Tua dívida com o próximo será paga aqui mesmo. Do outro lado, conversarás com Aquele de quem tanto te desfizeste, mas será tarde. Serás enviado para perto daqueles que por toda a vida reverenciaste e verás que não tiveram poder para salvar-se, muito menos para salvar-te. Naquele momento, talvez, a trave te cairá dos olhos e verás o tempo que perdeste. Não sei se serás capaz.

Não penses que esqueci de tuas filhas e filhos. Todos eles, cada um a seu turno, perceberão o tempo que perderam contigo e sumirão, como muitos somem. O ciclo se repetirá e, mais uma vez, perceberás que estás só contigo e com os demônios que te acompanham. Rodas o mundo, moves céus e terra tentando esquecer-te, mas nada resolve. Os que caem em si e se vão estão certos, és tu que não enxergas que o mundo também existe de dia e que o ano não tem dois meses.

Não te reservo o ódio porque este já tens e conheces bem, mora no teu coração. Espero que acordes deste longo sono e que procures uma saída, se tiveres tempo.

* BUARQUE, Chico; PONTES, Paulo. Gota D’Água. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 1982, p. 89 e 90.

sexta-feira, 27 de março de 2009

Passou e vai passar

Pelo pouco que fizeste, pelo tanto que simulaste e pelo muito que evitaste, nunca saberei se me amaste; não porque não pudeste e sim porque não quiseste.

Dentro em breve, ainda que dure a brevidade de décadas, lamentar-me-ei pelo que poderias ter sido e chorarás pelo que fui e rejeitaste. O tempo far-te-á considerar, mas este não volta atrás.

Indiferença no primeiro olhar, desejo no segundo, esperança e precaução no terceiro, insatisfação no quarto e conformação no quinto.

Para cada olhar uma lágrima e depois das lágrimas o sorriso meu. Ninguém me disse que seria fácil, eu sabia, mas agora passou e vai passar.

"Depois de mim virá quem de mim bom fará".

domingo, 22 de março de 2009

O próximo trem

A ansiedade e a mania de controlar a vida são duas companheiras que caminham juntas. A primeira faz com que eu corra atrás de algo como se sempre fosse o último trem que vai passando, e a segunda me dá a ilusão de poder parar esse trem a qualquer momento.

A ansiedade quer que eu entre no trem, qualquer trem, mesmo que eu desconheça o destino. Ela me inebria. Mostra-me um trem com velocidade constante, seguindo seu rumo sobre trilhos novos e brilhantes. Os passageiros aparecem felizes e, com seus convidativos sorrisos, dizem-me: “Vem!”. A fumaça que sai da locomotiva é sempre branca, e o maquinista não se preocupa com a lotação, porque lá cabem todos.

Dentro do trem só há alegrias, e já não me preocupo em descobrir seu destino. Tudo lá é bom e me embriaga. Sento-me à janela e vejo o verde das àrvores floridas que ficam para trás, prometendo seus frutos. Ouço vozes de crianças, que cantam e fazem planos, porque acreditam no impossível, assim como os adultos deveriam ser. Sem paradas, o trem avança rumo a seu destino.

Enquanto me distraía com a paisagem lá de fora, alguém se sentou ao me lado sem que eu percebesse. Por curiosidade, olhei por trás do jornal que meu novo companheiro de viagem lia e me surpreendi quando percebi que era eu mesmo. Era eu, mas não era eu. Era eu outro. Isso aí, era outro.

O outro ficou calado por um bom tempo, até que resolvi puxar conversa. O outro fechou o jornal, mas continuou marcando a página com o dedo. Acho que pretendia continuar lendo. Eu sabia que o trem não havia parado em nenhuma estação. Deduzi que o eu outro estava em outro vagão entretido com sua leitura, sem ter visto o que vi pela janela ou ter atentado para as músicas e sorrisos. Resolvi contar-lhe tudo o que tinha visto.

Após contar-lhe tudo, percebi que o outro era meio ácido, não ligava para nada daquilo que eu havia contado ou que estava acontecendo naquele trem. Achei melhor cortar o papo e concentrei-me na viagem. O outro começou a folhear seu periódico e olhava admirado para as fotos das reportagens. Esboçava um sorriso quando via as fotos de àrvores cultivadas em belos campos e, em volta delas, pessoas fazendo piquenique.

No começo, não entendi o motivo de alguém ver as fotos do jornal, se era possível olhar tudo pela janela. A felicidade das fotos estava viva no trem, mas, para isso, era necessário que se prestasse atenção. Não entendi porque o outro havia entrado naquele trem se não gostava daquela atmosfera. Só então compreendi que ele não olhava para as fotos do jornal por opção, mas por receio de se envolver com o ambiente do trem. Tinha medo de ser contagiado com aquela alegria e precisar descer, quando chegasse ao destino.

Quando voltei de meus pensamentos, o outro já não estava sentado ao meu lado. Cocei os olhos e quem já não estava no trem era eu. Eis que me vejo sentado no banco de uma estação. Agora sou em quem segura o jornal, que está dobrado e em baixo do braço. Aguardo um trem que virá, talvez não seja o próximo. Não sei se o mesmo de meus pensamentos, mas quero embarcar. Sei que não será o último, quero apostar.

Entendi que dentro do trem posso me sentar à janela e ver belos campos, como posso me sentar ao corredor e abrir um jornal. Às vezes, posso até levantar-me e ocupar o lugar do maquinista, por certo tempo, não sempre. E, aí, sim, poderei parar o trem quando desejar. Na verdade, almejar o controle do trem dá mais trabalho e é arriscado. É melhor voltar para um dos vagões e me adaptar ao que acontece. Quando os atrativos externos forem maiores, eu olho para fora. Quando o trem passar por lugares pouco atrativos, prestarei atenção no que acontece em seu interior. Em último caso, abrirei um jornal, talvez uma revista, e esperarei o quadro mudar.

A esperança deve ser o trilho que conduz ao destino, ainda que incerto. O medo deve ser a fumaça que sai da chaminé, aparece e some. Posso ouvir o som do trem se aproximando e tento enxergar seu destino. Se tudo der certo, eu embarco...

Amor, cachorro-quente e ódio: nem sempre nessa ordem

Dentre tantas relações conflituosas que tenho vivido, apresento-lhe a que maior relação tem com minhas necessidades gastronômicas, se é que merece esse nome bonito. Tenho vivido um sentimento de amor e ódio pela tia do cachorro quente. Tudo bem, sei que essa relação é de mais ódio e menos amor, mas nunca se deve demonstrar esse tipo de sentimento por quem prepara nossa comida. Coisas maravilhosas e terríveis podem sair da mesma cozinha, tudo depende de seu grau de amizade com quem cozinha.

Na Rua do Riachuelo há várias barracas e carrocinhas de lanches, dentre os quais o que mais atrai meu paladar é o cachorro-quente. A higiene no armazenamento dos ingredientes e no preparo dos lanches é quase nula. Mas, como dizem: “quem quer ter luxo, vai ao restaurante fino”.

Canso de ver ambulantes chegarem aos pontos habituais de venda por volta das 17 horas, com grandes pacotes de pão, potes com salsicha, hambúrguer, tomate, cebola e tudo o mais que a receita do molho pedir. Tudo bem que picar cebola não é a melhor das atividades para quem cozinha, mas ver os ambulantes picando os itens do molho tem o poder de levar qualquer cristão às lágrimas, e não é por causa do cheiro da cebola...

Qualquer lugar é lugar para estacionarem carrocinhas. Desde que fique em um lugar movimentado, não importa se é em cima de um bueiro ou perto de latões de lixo. Carrocinha no lugar e mãos à obra. Cortam-se pães, picam-se tomates e cebolas, abrem-se latas de milho e de ervilha. Tudo é manuseado com a maior velocidade possível e com a limpeza que der.

Talvez o que faça o cachorro-quente da rua ser mais saboroso que o caseiro seja esse misto de ingredientes, encontrados apenas naquelas calçadas. Poeira, fumaça de automóveis e talvez alguns fios de cabelo, não muitos. Seria muito pessimismo pensar que todos os lanches estejam impregnados pelos brindes supracitados, isso pode acontecer com um ou outro.

Mesmo tendo consciência de tudo isso, não resisto a um bom cachorro-quente, por isso, após inspecionar visualmente algumas carrocinhas de lanches, elegi a da tia da esquina das ruas do Riachuelo e Gomes Freire como a predileta. Aparentemente a carrocinha é limpinha e está sempre arrumada. As panelas são pequenas porque a dona leva pouca quantidade para a rua, consequentemente, nada deve sobrar para o outro dia, evitando os problemas com o armazenamento de alimentos prontos.

O nome da tia é tia mesmo e o meu nome, para ela, é meu querido, meu bem, filho, moço, etc., depende da quantidade de álcool que a tia tiver bebido, visto que ela trabalha molhando o bico. Não me importa que ela beba em serviço, afinal, ela é dona de seu próprio negócio, só não gosto quando ela se atrapalha com o cigarro, com a latinha de Skol e com o dinheiro. Ela acaba esquecendo qual é a mão que está segurando o quê e segura tudo com as duas. Ainda não é isso que me aborrece.

Sempre que chego, a cumprimento e peço um cachorro-quente de salsicha completo para viagem, viro para o lado e acabo me distraindo com o movimento da rua. Prefiro levar para casa e comer com calma. Não pense que dou mais trabalho, porque a diferença é que o para viagem é colocado em uma sacolinha plástica. A tia, muito ágil, começa a preparar o lanche. “Salsicha, né?!”, ela pergunta. Com um sorriso digo que sim. A partir daí sei que ela vai fazer um inferno em minha cabeça com uma série de perguntas que não servem para nada.

Qual será a parte que ela não entende? Já tentei falar cachorro-quente de salsicha completo e cachorro-quente completo de salsicha, mas não adiantou. Não conheço outra combinação possível. Agora não dá mais, a dificuldade de entender é dela. Tal qual o alcoólatra, que não pode dar o primeiro gole, a tia não pode fazer a primeira pergunta que desembesta com várias outras.

Já pensei que isso pode ser uma tática para economizar ingredientes. Se o cliente diz que quer um completo e ela não diz o que tem para colocar, ela acaba usando todos os ingredientes. Mas se ela diz item por item, ainda resta a esperança de o cliente repensar seu desejo e rejeitar algo.

— Molho de cebola, tomate e pimentão?
— Sim.
— Ovinho de codorna e azeitona?
— Por favor.
— Batata palha?
— Quero.
— Catchup, mostarda e maionese?
— Hum, hum.
— Os três?
— Isso...

A essa altura já estou sem saco. Não é possível, é muita falta de atenção comigo e excesso de atenção na pessoa ao lado, que nunca é cliente. Todas as vezes em que cheguei lá, ela estava conversando com alguém: um senhor, uma mulher com um menino ou uma mulher sozinha. Que gente à-toa para atrapalhar! E o pior é que sempre chego no auge do papo e por isso a tia não consegue prestar atenção em meu pedido. Ou paro de comer lá ou enxoto essa gente que conversa com ela. Das duas, uma.

Nunca fiz um pedido difícil, a não ser o último do qual ainda me arrependo. Sábado passado em especial, não estava com a barriga muito boa, por isso pedi que ela não colocasse em meu cachorro-quente ovo de codorna ou azeitona, a eterna culpada da indigestão. Acreditando na teoria do “economizar ingredientes”, nem me preocupei. Quando penso que não ela começa.

— Molho de cebola, tomate e pimentão?
— Sim.
— Batata palha?
— Quero.
— Catchup, mostarda e maionese?
— Hum, hum.

Enfim o lanche está pronto. Pensei que estaria livre das perguntas e pronto para matar a fome. Paguei, peguei o troco e, excepcionalmente, dei a primeira mordida ali mesmo. Adivinhe o que consegui achar de primeira? O ovo de codorna e a azeitona. Ela não perguntou e colocou assim mesmo. Esqueceu-se de perguntar porque estava entretida com o papo. Desisti de comprar nela, mas, como não consigo desistir do cachorro-quente, continuo comprando. A tia é como é (uma perguntona) eu é que preciso me adaptar. Vamos ver qual será a próxima.