quinta-feira, 2 de abril de 2020


O Medo da Covid-19

Em meio à pandemia de Covid-19, seguindo as orientações das autoridades de saúde mundiais, a melhor forma de prevenção é o isolamento social e a adequada lavagem das mãos. Dessa forma, os saudáveis não se contaminam, e os doentes não transmitem a doença. Assim, muda-se a rotina e surge a necessidade de adaptação a uma nova realidade.

Antes disso tudo, na correria do dia a dia, trabalhávamos para conquistar coisas e não tínhamos tempo para cuidar delas exatamente pela necessidade de estar na rua. Agora, durante a quarentena, apesar da possibilidade de teletrabalho para alguns profissionais, sobra tempo, e aí percebemos o quanto éramos felizes sem saber.

Ir ao supermercado transformou-se em um evento, porque temos a chance de ver pessoas conhecidas; conversar, ainda que a distância do interlocutor; tomar um sol no caminho e lembrar do cheiro de pipoca feita na hora, da senhora que vende bolo, da agitação da rua, dos engarrafamentos, do vai e vem de gente, do grito das crianças, da correria dos estudantes saindo da escola, da calçada disputada por camelôs... Sentimos falta até do que nos irritava.

Agora está cada um na sua casa, e devemos ser gratos por isso, porque há pessoas sem um lugar para chamar de seu em que se possam proteger. Alguns planos ficaram para trás, pois tinham dia certo; outros ficarão para uma data que esperamos ser próxima, mas no fundo ninguém sabe quando voltaremos à normalidade.

Por enquanto, resta-nos a esperança de que esta é uma fase, um desafio que será superado como diversos outros foram. Precisamos manter-nos vivos, saudáveis e com nossa saúde mental em dia. Milhares já morreram pelo mundo, e outros podem ter o mesmo destino, mas os que ficarem precisam ser fortes, amparar os enlutados e ver nisso uma oportunidade de repensar os caminhos que trilhamos, as prioridades que definimos e os casos em que lavamos as mãos à maneira de Pilatos.

Nunca nos esqueceremos dos momentos que estamos vivendo, mas quem vencer sairá mais forte, confiante, valorizando o que de verdade temos de mais importante: a vida, os parentes e amigos com saúde e tudo aquilo que agora está fazendo uma falta danada.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Marginais e Desviantes: uma breve análise sobre a imposição de regras

INTRODUÇÃO

Este trabalho é composto, basicamente, por dois capítulos: o primeiro preocupa-se em resumir e fichar dois textos que fazem parte do livro Uma teoria da ação coletiva, de Howard Saul Becker, um sociólogo e professor universitário norte-americano; o segundo, relaciona as ideias centrais dos textos a outras fontes.

Como é sabido, um resumo não pode ser profundo a ponto de o leitor desinteressar-se pela fonte nem tão superficial a ponto de não apresentar minimamente o material de base. Assim, espera-se que se tenha chegado à boa medida.

Em relação ao fichamento, dentre os mais comuns, optou-se pelo tipo de transcrição, segundo o qual se destaca do texto, ipsis litteris, os excertos considerados mais significantes, para que sirvam de guia para a exposição do tema e para que os leitores tenham ideia da dimensão do enfoque do autor dos originais. Assim, evitou-se repetição desnecessária, caso se escolhesse o tipo “fichamento de comentário”, por exemplo, tendo em vista que esta foi a preocupação das seções seguintes deste trabalho.

Na seção destinada à ideação, por sua vez, os textos lidos foram correlacionados ao conto O Alienista, de Machado de Assis; à música Apesar de você, de Chico Buarque; e ao direito de resistência, incluído explicitamente na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa e implicitamente na Declaração de Independência dos Estados Unidos. Para esta empreitada, serão considerados a objeção de consciência, o direito de greve, a desobediência civil, a autodeterminação dos povos e o direito à revolução.

Por fim, na seção dedicada à crítica, abre-se um espaço para uma análise mais livre, relacionando fragmentos dos textos a informações e exemplos externos, agregando um pouco das experiências pessoais dos membros que compuseram este trabalho, com o objetivo de entender a aplicação dos conceitos estudados à sociedade em que se vive.

Deseja-se que esta seja uma boa leitura e que cumpra adequadamente seu objetivo!

1. PARTE I

1.1 Resumo

No terceiro capítulo, intitulado “Marginais e Desviantes”, Becker afirma que todos os grupos sociais fazem regras e tentam, de alguma forma, fazer com que sejam seguidas. A partir daí, elas determinam o comportamento mais apropriado para cada situação social, estabelecendo o que é “certo” ou “errado”. Diante disso, há duas óticas para a questão do desvio, pois as pessoas consideradas como marginais ou desviantes pelo fato de não terem se adaptado podem entender que quem os julga são os verdadeiros “marginais”, tendo em vista que impuseram regras de cuja elaboração nem todos participaram.

Na sequência, o autor esclarece as situações de transgressão e de imposição de regras, e os processos pelos quais algumas pessoas transgridem ou impõem regras. Para isso, é preciso entender que há regras de muitos tipos, as quais podem ser formais, como as leis, ou informais, cuja desobediência não está submetida ao poder de polícia do Estado, mas a sanções informais de várias espécies. Além disso, a responsabilidade pela imposição das regras pode ser responsabilidade de um corpo especializado, no primeiro caso, ou de toda a coletividade ou membros de um grupo, no segundo. Nesse ponto reside a principal preocupação daquele estudioso: as regras mantidas vivas por meio de tentativas de imposição.

Dito isso, Becker informa que a pesquisa científica buscou resposta para diversas perguntas a respeito das possíveis causas que levariam alguém a desviar-se das regras do grupo. Então, duas premissas do senso comum foram aplicadas, a primeira acredita que haveria algo inerentemente desviante em relação a atos que transgridem regras sociais, já a segunda aceita a existência de alguma característica intrínseca ao desviante, a qual o levaria à inobservância da regra.

Isto posto, na tentativa de definir “desvio”, o professor estadunidense apresenta três definições utilizadas por cientistas, para, na sequência, verificar o que ficaria de fora, caso fossem tomadas como ponto de partida. A primeira delas é essencialmente estatística, a qual fixa como desviante qualquer coisa que varie de forma ampla em relação à média, mas essa definição está muito afastada da preocupação com a quebra de regras que inspira o estudo científico de marginais e desviantes. A segunda delas, sob uma ótica médica, vê o desvio como algo patológico, revelando a presença de uma “doença”. Porém, se há divergências quanto ao que seria um estado saudável do organismo, imagine-se a dificuldade de se especificar o que é funcional ou disfuncional para uma sociedade ou grupo social. Por fim, segundo uma visão sociológica, desvio seria o fracasso em obedecer às regras do grupo.

Esta última, apesar de ser a que mais se aproxima da definição do autor, não oferece o embasamento necessário às ambiguidades que surgem na deliberação de quais regras devem ser aceitas como ponto de comparação para que um comportamento seja medido e julgado desviante. Em razão disso, o teórico sugere que se deve utilizar uma definição que permita lidar com situações ambíguas ou não.

Nesse diapasão, supor que os desviantes constituam uma categoria homogênea, porque cometeram o mesmo ato desviante, ignora o fato de o desvio ter sido criado pela sociedade, haja vista que os grupos sociais criam o desvio ao fazer as regras cuja infração constitui desvio. Portanto, não há que se falar em uma característica intrínseca ao desviante ou certa situação de vida, pois o desvio é a consequência da aplicação por outras pessoas de regras e sanções a um suposto transgressor.

A essa altura, o autor sublinha que o grau em que outras pessoas reagirão a um ato dado como desviante varia conforme o tempo, a pessoa que o comete e aquela que se sente prejudicada. Assim, além de entender que as regras tendem a ser aplicadas mais a algumas pessoas do que a outras, deve-se ter em mente que algumas delas são impostas somente quando resultam em certas consequências. Logo, apontar se um ato é desviante ou não dependerá da natureza do ato e do que outras pessoas fazem em relação a ele.

No final do referido capítulo, há diferentes circunstâncias em que as pessoas tentam impor suas regras a quem não as subscreveu. Na primeira delas, apenas os membros do grupo têm interesse em impor certas regras; na segunda, os membros do grupo julgam importante que membros de outros grupos obedeçam às regras. Assim, o texto indica que forçar outras pessoas a aceitar regras tem relação com o poder político e econômico de quem pratica a imposição.

Continuando, já no quinto capítulo do livro, Becker analisa as pessoas que fazem e impõem as regras às quais os estranhos não se adaptam e, por isso, são chamados de marginais e desviantes. Aduz que a existência de uma regra não garante automaticamente que ela será imposta, pois nem sempre a sociedade fica prejudicada e atua no sentido de restaurar o equilíbrio depois de uma quebra de regras.

Destarte, regras só são impostas quando algo provoque a imposição, a qual exige explicação baseada em diversas premissas: alguém deve tomar a iniciativa de punir o culpado; a imposição ocorre quando aqueles que desejam que a regra seja imposta chamam publicamente a atenção dos outro para a infração; o tipo de interesse pessoal que induz à imposição varia conforme a complexidade da situação para produzir tanto a imposição de regras como o fracasso da imposição.

Entretanto, em casos em que dois grupos competem pelo poder da mesma organização, a imposição ocorrerá apenas se os sistemas de compromisso que caracterizam a sua relação se romperem; caso contrário, o interesse de todos fica melhor satisfeito permitindo-se que as infrações continuem. Portanto, o que em outras situações seria uma infração passa a fazer parte de uma rede de troca de favores, cujo objetivo é não denunciar uma infração para não ser denunciado.

Acrescenta o sociólogo que as regras legais tendem a não ser ambíguas, mas as informais e consuetudinárias têm maior chance de serem vagas e de terem amplas áreas nas quais podem receber várias interpretações, variando, inclusive, para atender aos interesses específicos de alguém. Por fim, apresenta, exemplificativamente, um exemplo a respeito da legislação de taxação da maconha nos Estados Unidos, para ilustrar os caminhos que levaram o uso dessa erva de uma prática indiferente à administração pública a um “problema” a ser resolvido com a imposição de taxas e proibições.

Concluiu-se que, onde quer que as regras sejam criadas e aplicadas, é preciso atentar para a possível presença de alguém que tome a iniciativa de impô-las; sempre haverá quem busque o apoio de grupos para ratificar sua posição; e, por fim, o processo de imposição é moldado pela complexidade da organização, pautado em acordos compartilhados em grupos mais simples e resultando de manobras e barganhas políticas em uma estrutura complexa.

1.2 Fichamento

Segundo Henriques e Medeiros (1999, p. 59), “os fichamentos mais comuns são: a) de indicação bibliográfica: uma ficha que contém apenas nome do autor, título da obra, assunto; b) de transcrição ou citação direta; c) de comentário (também chamado de glosa, ou apreciação); d) de resumo”. Diante disso, optou-se pelo segundo tipo, isto é, o de transcrição, tendo em vista que o primeiro seria insuficiente e os demais se confundiriam com outras seções deste trabalho.

BECKER, Howard S. Uma teoria da ação coletiva. Trad. Márcia Bandeira de Mello Leite Nunes. Rio de Janeiro: Zahar Editores, s.d. p. 53-67/86-107.

“Todos os grupos sociais fazem regras e tentam, em alguns momentos e em algumas circunstâncias, fazer com que elas sejam seguidas.” (p. 53).

“Quando uma regra é imposta, a pessoa que se supõe tê-la transgredido pode ser vista como [...] marginal ou desviante.” (p.53).

“[...] a pessoa que quebra as regras pode sentir que seus juízes são desviantes.” (p. 53).

“As regras podem ser de muitos tipos. Elas podem ser formalmente promulgadas como lei e, nesse caso, o poder de polícia do Estado pode ser usado para impô-las. Em outros casos, representam acordos informais, aos quais se chegou recentemente ou vinculados à sanção da idade e da tradição” (p. 54).

“É facilmente observável que grupos diferentes julgam coisas diferentes como sendo desviantes.” (p. 55).

“as pessoas pertencem a muitos grupos simultaneamente. Uma pessoa pode quebrar as regras de um grupo pelo simples ato de se curvar perante as regras de um outro grupo.” (p. 59).

“ele [o desvio] é criado pela sociedade.” (p. 59).

“os grupos sociais criam o desvio ao fazer as regras cuja infração constitui desvio e ao aplicar essas regras a pessoas particulares e rotulá-las como marginais e desviantes.” (p. 60).

“O desviante é alguém a quem aquele rótulo foi aplicado com sucesso; comportamento desviante é o comportamento que as pessoas rotulam como tal.” (p. 59).

“O fato de um ato ser desviante, então, depende de como as pessoas reagem a ele.” (p. 62).

“O grau em que outras pessoas reagirão a um ato dado como desviante varia enormemente.” (p. 62).

“O grau em que um ato será tratado como desviante depende também de quem comete o ato e de quem sente que foi prejudicado por ele. As regras tendem a ser aplicadas mais a algumas pessoas do que a outras.” (p. 63).

“’marginais’, do ponto de vista da pessoa que é rotulada como desviante, podem ser as pessoas que fazem as regras de cuja transgressão ela foi considerada culpada.” (p. 65).

“As regras formais, impostas por algum grupo constituído em especial, podem diferir daquelas que são consideradas realmente apropriadas pela maioria das pessoas.” (p. 65).

“a existência de uma regra não garante automaticamente que ela será imposta” (p. 86).

“É mias típico que as regras só sejam impostas quando algo provoque a imposição. A imposição, então, exige explicação.” (p. 86).

“O habitante da cidade preocupa-se com seus próprios problemas e nada faz em relação à infração de regras a não ser que ela interfira em seus negócios.” (p. 87).

“Quando dois grupos que competem pelo poder existem na mesma organização, a imposição ocorrerá somente quando os sistemas de compromisso que caracterizam a sua relação se rompem; caso contrário, o interesse de todos fica melhor satisfeito permitindo-se que as infrações continuem.” (p. 92).

“Regras específicas podem ser reunidas em legislação. Podem simplesmente ser consuetudinárias num grupo particular, armado apenas com sanções informais. As regras legais, naturalmente, têm maior probabilidade de não serem ambíguas; as regras informais e consuetudinárias têm maior probabilidade de serem vagas e de terem amplas áreas nas quais podem receber várias interpretações.” (p. 96).

“uma regra pode ser estabelecida simplesmente para servir aos interesses específicos de alguém e uma base lógica para ela pode ser descoberta posteriormente em algum valor geral.” (p. 97).

“onde quer que as regras sejam criadas e aplicadas, esperamos que os processos de imposição sejam moldados pela complexidade da organização, repousando sobre uma base de acordos compartilhados em grupos mais simples e resultando de manobras e barganhas políticas numa estrutura complexa.” (p. 107).

2. PARTE II

2.1 Ideação

O texto de Howard Saul Becker, quando diz que o desviante é alguém a quem um rótulo foi aplicado com sucesso, remete o leitor a O Alienista, um conto realista de Machado de Assis, especialmente quanto à crítica social e à análise psicológica. Nele se vê a personalidade dos indivíduos influenciada por fatores sociais e a sociedade influenciada por fatores psicológicos, tudo sob o atento diagnóstico do Dr. Simão Bacamarte, o protagonista.

Diz-se que o médico diplomado em Portugal escolheu Itaguaí para residir, criar um hospício e estudar a fronteira entre razão e loucura. Assim, analisava a saúde psicológica dos moradores daquela cidade fluminense e seu grau de influência nas relações sociais. Suas análises tinham metodologia científica próprias dele, o qual muitas vezes mudou seus critérios de avaliação. Apesar disso, ele tinha o apoio estatal para tudo o que fazia e ganhou um auxílio da Câmara de Vereadores por cada internação durante muito tempo.

As primeiras indicações de internação foram apoiadas pela sociedade itaguaiense, visto que os internos eram pessoas consideradas loucas por todos. Porém, como o passar do tempo, a população começou a questionar as decisões do alienista, o qual passou a ser visto como um déspota traiçoeiro que lucrava com o aumento do número de internações.

Finalmente, depois de inúmeras teorias, após ver 75% dos moradores aprisionados em seu hospício, o médico mudou mais uma vez seus critérios. Mandou soltá-los e considerou loucos apenas aqueles que mantiveram sua personalidade reta ao longo do tempo. Entretanto, ao ver que este seu último critério era falho e que ele próprio era o único que se manteve “íntegro” até o fim, soltou todos os loucos da Casa Verde e encerrou-se lá até seu último dia.

Esse conto é ilustrativo para que se confirme que a ideia de desvio é criada pela própria sociedade e as razões que justificam a imposição das regras pode mudar com o tempo, não só por uma alteração na mentalidade do grupo, mas também para atender aos interesses de alguns, como ocorreu no caso acima.

Agora, tendo em vista que a imposição de regras tem relação com o poder político e econômico de quem pratica tal ato, pode-se lembrar também da música Apesar de você, de Chico Buarque, a qual demonstra nos versos “Você que inventou o pecado esqueceu-se de inventar o perdão” que o opressor tem facilidade e razões para criar regras, mas não tem o mesmo empenho para desenvolver meios para que os destinatários da norma deixem de ser vistos como marginais e desviantes, mesmo porque, inventando-se o perdão, perde-se parte do poder sobre o outro.

Além disso, o marginal e desviante aos olhos da sociedade, pode rejeitar-se a seguir uma regra pelo fato de não considerá-la justa ou de não ter sido chamado a participar de sua criação. Nesse contexto, marginais e desviantes seriam aqueles que julgam e tentam impor suas próprias regras. Diante disso, veja-se como isso se associa ao direito de resistência.

Sabe-se que, ao longo da história universal, são inúmeros os casos de governos e agentes públicos que, ignorando a legitimidade de seus atos ou a opinião do povo, agem com o objetivo de atender a seus próprios interesses, ferindo o sentimento de democracia. Se por um lado o povo muitas vezes assistiu de forma submissa à tirania, por outro são dignos de menção aqueles em que, ciente de seu poder de mobilização, o povo subjugado conscientizou-se e mudou o rumo de sua própria vida e de seu país.

Com maior ou menor intensidade, com ou sem uso da força, o indivíduo e a coletividade, depois de ferido um direito primário, podem mobilizar-se e lutar pela mudança. Assim, diante de um governo não democrático, os povos têm a faculdade de resistir. O direito de resistência admite inclusive o uso da força para atingir o objetivo de derrubar e substituir o governo ilegítimo por um legítimo, garantindo, como consequência, a manutenção das práticas democráticas.

Na Antiguidade já se falava sobre o direito de resistência a um governo tirânico, que justificaria até mesmo a morte do governante. Platão já discorria sobre a possibilidade de o povo defender-se de um governo tirânico e injusto. Depois daquele filósofo, outros autores trataram do mesmo assunto, como São Isidoro de Sevilha e São Tomás de Aquino.

No final do século XIX, o direito de resistência foi incluído explicitamente na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa e implicitamente na Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776), que declara:
Todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade. Que a fim de assegurar esses direitos, governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados; que, sempre que qualquer forma de governo se torne destrutiva de tais fins, cabe ao povo o direito de alterá-la ou aboli-la e instituir novo governo.
Na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), esse direito não é reconhecido explicitamente, mas implicitamente em seu preâmbulo: “Considerando que é essencial, para que o homem não seja obrigado a recorrer, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão, que os direitos humanos sejam protegidos pelo estado de direito”.

Por sua vez, a Constituição da República Portuguesa (1976), em seu art. 21, na parte que trata dos direitos e deveres fundamentais, afirma que “Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública”. Dito isso em linhas gerais, a seguir se verá a classificação do direito de resistência.

Segundo a classificação do Prof. José Carlos Buzanello, o direito de resistência seria gênero, tendo como espécies a objeção de consciência; a greve; a desobediência civil; o direito à revolução; e o princípio da autodeterminação dos povos (BUZANELLO, p. 17).

Ocorre objeção de consciência quando um indivíduo se recusa a cumprir deveres conflitantes com suas convicções morais, políticas ou filosóficas, ignorando uma obrigação jurídica imposta a todos pelo Estado. Na objeção de consciência existe razoável nível de consciência, com alguma publicidade e sem agitação, com vistas a um tratamento alternativo ou alterações na lei. Observa-se que a própria Constituição de 1988 prevê a objeção da consciência, apresentando duas perspectivas: a primeira é uma recusa genérica de consciência (art. 5º, VIII, CF) e a segunda é uma recusa restritiva em relação ao serviço militar (art. 143, § 1°, CF).

Além disso, quando trabalhadores entendem que seus direitos não estão sendo devidamente respeitados ou quando reivindicam novos direitos, pode-se, de forma organizada, exercer o direito de greve política. Ressalta-se que essa é uma medida de resistência lícita excepcional, semelhante ao estado de necessidade e à legítima defesa, por exemplo.

O art. 9º da Constituição da República assegura aos trabalhadores o direito de greve, esclarecendo que compete a eles a decisão do melhor momento de exercê-lo e dos interesses em questão e que os possíveis abusos podem ser punidos pela lei. Porém, há atividades e serviços essenciais que, dada sua relevância, apresentam regras próprias em relação à greve.

A desobediência civil, por sua vez, é uma forma indireta de participação da sociedade, pois não possui participação suficiente junto às esferas do Estado para tornar-se ente político legítimo. Com isso, ocorre desconsideração da legitimidade de uma autoridade pública ou uma lei. Dentre as propriedades da desobediência civil, encontram-se: não-violência e ações públicas de caráter coletivo; sentimento de injustiça em relação à lei ou uma decisão por meio de pressão junto aos órgãos de decisão do governo; e propostas de reforma jurídica e política. Nota-se que não se pretende exatamente que o governo seja derrubado, mas que suas práticas sejam substituídas.

Em uma perspectiva direta, a desobediência civil se dá quando as leis do Estado são desafiadas de forma aberta (p. ex., campanhas públicas contra a discriminação racial nos EUA e na África do Sul, ou a campanha das Diretas Já, no Brasil). Em uma perspectiva indireta, ataques a leis isoladas desafiam as estratégias do Estado, sendo executados para mostrar publicamente a injustiça da lei e induzir o legislador a revogá-la. (p. ex., o movimento dos sem-terra, que desafia a lei de proteção à propriedade privada e solicita a reforma agrária).

O art. 5º, § 2°, da Constituição brasileira assegura que os direitos e garantias previstos em seu texto “não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Dentre os quais, destacam-se, sobretudo, o princípio da proporcionalidade e o da solidariedade.

Ademais, as nações podem organizar-se livre e politicamente, assegurando sua soberania, a isso se chama autodeterminação dos povos. Assim, escolhe-se a forma de governo (República ou Monarquia) e o sistema de governo (Presidencialismo, Parlamentarismo, Semipresidencialismo) de sua preferência. O Pacto Fundamental assegura que a autodeterminação dos povos é um princípio político de direito internacional (art. 4º, III, CF).

Por fim, quando um povo se sente extremamente prejudicado pela tirania de um governo autoritário, existe o direito à revolução, mesmo que para isso a violência seja utilizada. Destaca-se que a negação disso seria um atentado à dignidade humana (BUZANELLO, p. 20). Por entender que o governo ilegítimo passou dos limites, o povo pode fazer uso da força para reivindicar seus direitos.

Houve importantes movimentos revolucionários que afirmaram e justificaram o exercício do direito de resistência por meio da revolução, dentre eles encontram-se:

• A Revolução Gloriosa: o direito de rebelião fundamentou a defesa filosófica da derrota e substituição de Jaime II por Guilherme III, pelo parlamento do Reino Unido (1688);

• A Revolução Americana: o direito de resistência ocuparia um papel principal nos escritos dos revolucionários norte-americanos. Além disso, foi citado na Declaração de Independência dos Estados Unidos, quando um grupo de representantes de vários estados assinou uma declaração de independência em relação à Inglaterra. Segundo a declaração, a lei natural assegura que o povo está dotado pelo Criador de certos direitos inalienáveis e pode alterar ou abolir um governo que destrua esses direitos;

• A Revolução Francesa: o direito de resistência também foi incluído na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) durante a Revolução Francesa, assim como na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1793.

Assim, demonstra-se que aqueles indivíduos considerados marginais e desviantes podem rebelar-se contra os opressores, não só para descumprir as regras arbitrariamente impostas, mas também para destituí-los do poder.

2.2 Crítica

Depois da leitura dos textos de Becker, cabe analisar de forma crítica alguns pontos considerados relevantes. Veja-se a relação que existe entre a tolerância com os desviantes e as atitudes dos demais indivíduos que veem o comportamento marginal:
Uma pessoa que comete uma infração de trânsito ou bebe um pouco mais numa festa não é, afinal, tão diferente de nós, e tratamos sua infração com tolerância. Consideramos o ladrão menos parecido conosco e o punimos severamente. Crimes como assassinato, violação ou traição levam-nos a encarar o violador como um verdadeiro marginal. (BECKER, p. 54).
Percebe-se, com isso, que quanto maior a probabilidade de o indivíduo praticar o ato desviante ou ter alguém íntimo que o pratique, maior será o grau de tolerância diante de um “delito”. Conforme o exemplo dado, uma infração de trânsito, apesar de ser algo condenável para a maioria dos indivíduos, pode ser cometida por qualquer um. Portanto, antes de apontar a infração de alguém, a tendência é que a pessoa se coloque no local do “infrator” e seja mais tolerante caso haja identificação.

Entretanto, quando a inobservância das regras é relacionada a algo que poucos indivíduos teriam coragem de fazer, como um assassinato ou uma violação, o infrator é tratado sem misericórdia, pois as testemunhas não se veem nele. Deduz-se que a rigidez da punição é inversamente proporcional à probabilidade de os criadores das regras e testemunhas praticarem o mesmo ato.

Além disso, quando se cria uma regra, implicitamente, pensa-se na possibilidade de descumprimento. Diante disso, prevê-se uma sanção, a qual, na prática, diz aos indivíduos: “Caso você descumpra a regra, sua punição será esta. Portanto, pense se compensa”. Por essa razão, há muito mais infratores de trânsito do que assassinos no mundo, pois a sanção destes é bem mais gravosa que a daqueles. Obviamente, quando se diz que algo é proibido, dificilmente os destinatários da norma são totalmente impedidos de fazê-lo. Na verdade, a proibição é uma forma de levar a sanção ao conhecimento da coletividade, mas não tem o poder de impedir o descumprimento efetivamente.

Outro ponto interessante é observar que grupos diferentes julgam coisas diferentes como sendo desviantes. Tendo em vista que pessoas de um mesmo grupo pensam de forma diferente, já é esperado que pessoas diferentes pensem de forma diferente. Lembre-se da política. Todos os políticos, supostamente, lutam por saúde, segurança e educação, mas cada partido, cada político, tem seus próprios métodos. Independentemente da linha seguida, acredita-se que a melhor forma de promover o bem é por meio das práticas do próprio grupo e não das do outro. Portanto, o conceito de certo e errado depende dos olhos de quem vê e essa atitude política se percebe nas mais diversas práticas sociais.

Ao lembrar que as regras tendem a ser mais aplicadas a umas pessoas do que a outras, percebe-se que ainda nos dias de hoje, muitas vezes, a igualdade é apenas formal, isto é, nem todos têm acesso às mesmas oportunidades e, quando são punidos por uma infração, a penalidade não é necessariamente a mesma. Na verdade, antes de considerar o fato, a punição considera o indivíduo, o qual, caso pertença a uma classe abastada ou ocupe uma função de destaque, será perdoado ou terá sua pena abrandada, logo de início ou ao longo do tempo, quando cair no esquecimento dos demais.

Infelizmente, ainda é comum que denúncias aconteçam não para promover a justiça, pensando na probidade e no interesse comum, mas como um instrumento de vingança contra adversários. Antes de beneficiar o grupo, pensa-se em prejudicar o desviante, pelo fato de este ter deixado de atender a algum interesse particular ou por ter colocado obstáculos para a prática de outras infrações. Sob essa lógica, pune-se alguém que cometeu um delito para que o caminho fique livre para que terceiros pratiquem novos delitos, tira-se um corrupto para que outros corruptos tenham sua vez.

Salienta-se que essa prática nem sempre é vista como nociva. Como foi dito, os habitantes dos grandes centros costumam preocupar-se com seus próprios problemas, não interferem nas infrações a regras que supostamente não interferem em seus negócios. Por sempre acreditar que haverá alguém responsável pela denúncia, o cidadão deixa de exercitar sua cidadania e esquece seu papel de fiscal, não só do poder público, mas também do ambiente em que vive.

Apesar disso, se a existência de uma regra não garante automaticamente que ela será imposta, também não garante que ela será cumprida. Daí, é comum que pessoas não queiram se envolver por medo de serem taxadas de delatoras ou perderem oportunidades escusas no futuro, tendo em vista que, sob uma ótica inversa, a fama de honestidade poderia afastar boas oportunidades.

Conclui-se que a leitura desses dois textos de Becker foi importante para a compreensão da maneira como as regras podem ser impostas aos indivíduos e segregar pessoas que não as cumpram ou simplesmente discordem delas. Os textos se sustentam, pois a argumentação e os exemplos apresentados são verossímeis e facilmente identificáveis com regras de experiência comum. Assim, espera-se que este trabalho tenha servido para ensejar questionamentos a respeito de regras que, muitas vezes, são criadas e impostas para atender aos interesses de um pequeno grupo, interessado em segregar os demais indivíduos como marginais e desviantes, sem que isso seja revertido em progresso para a sociedade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSIS, Machado de. O alienista. São Paulo: Editora Martin Claret, 2004.

BECKER, Howard S. Uma teoria da ação coletiva. Trad. Márcia Bandeira de Mello Leite Nunes. Rio de Janeiro: Zahar Editores, s.d. p. 53-67/86-107.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: . Acesso em: 19 jan. 2014.

BUZANELLO, José Carlos. Direito de Resistência. Disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2014.

DECLARAÇÃO dos Direitos do Homem e do Cidadão (1793). Disponível em: . Acesso em: 15 jan. 2014.

DECLARAÇÃO Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: . Acesso em: 15 jan. 2012.

HENRIQUES, Antonio; MEDEIROS, João Bosco. Monografia no curso de Direito. 2ª. ed. São Paulo: Editora Atlas S.A., 1999.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Direito de Resistência

INTRODUÇÃO

“Quando o governo viola os direitos do Povo, a revolta é para o Povo e para cada agrupamento do Povo o mais sagrado dos direitos e o mais indispensáveis dos deveres”.

(Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1793, Art. 35)

Ao longo da história universal, são inúmeros os casos de governos e agentes públicos que, ignorando a legitimidade de seus atos ou a opinião do povo, agem com o objetivo de atender a seus próprios interesses, ferindo o sentimento de democracia. Se por um lado o povo muitas vezes assistiu de forma submissa à tirania, por outro são dignos de menção aqueles em que, ciente de seu poder de mobilização, o povo subjugado conscientizou-se de seu poder e mudou o rumo de sua própria vida e de seu país. Haja vista os exemplos das revoluções liberais entre os séculos XVIII e XIX.

Com maior ou menor intensidade, com ou sem o uso da força, o indivíduo e a coletividade, depois de ferido um direito primário, podem mobilizar-se e lutar pela mudança. Assim, o governo ilegítimo pode ser substituído e as práticas às vezes legais, mas injustas, podem ser modificadas.

Este trabalho tem o objetivo de estudar brevemente o direito de resistência a essas práticas injustas. Para isso, na primeira parte, define-se o que seria direito de resistência e apresenta-se sua incidência ao longo de momentos da história mundial, bem como sua classificação. Na sequência, considera-se a abordagem de Bobbio e Locke em relação ao tema e escolhe-se o direito de greve para analisar a jurisprudência do STF. Na segunda parte, analisa-se o filme Tropa de Elite II sob a perspectiva da objeção de consciência, um dos tipos de exercício do direito de resistência.

1. DIREITO DE RESISTÊNCIA

Diante de um governo não democrático ou de um inicialmente democrático, mas que com o tempo tornou-se antidemocrático, os povos têm a faculdade de resistir. O direito de resistência admite inclusive o uso da força para atingir o objetivo de derrubar e substituir o governo ilegítimo por um legítimo, garantindo, como consequência, a manutenção das práticas democráticas.

Na Antiguidade já se falava sobre o direito de resistência a um governo tirânico, que justificaria até mesmo a morte do governante. Platão já discorria sobre a possibilidade de o povo defender-se de um governo tirânico e injusto. Depois daquele filósofo, outros autores trataram do mesmo assunto, como São Isidoro de Sevilha e São Tomás de Aquino.

No final do século XIX, o direito de resistência foi incluído explicitamente na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa e implicitamente na Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776), que declara:
[...] todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade. Que a fim de assegurar esses direitos, governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados; que, sempre que qualquer forma de governo se torne destrutiva de tais fins, cabe ao povo o direito de alterá-la ou aboli-la e instituir novo governo [...].


Na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), esse direito não é reconhecido explicitamente, mas implicitamente em seu preâmbulo: “Considerando que é essencial, para que o homem não seja obrigado a recorrer, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão, que os direitos humanos sejam protegidos pelo estado de direito”.

Por sua vez, a Constituição da República Portuguesa (1976), em seu art. 21, na parte que trata dos direitos e deveres fundamentais, afirma que “Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública”. Dito isso em linhas gerais, a seguir se verá a classificação do direito de resistência.

1.1 Classificação do direito de resistência

Segundo a classificação do Prof. José Carlos Buzanello, o direito de resistência seria gênero, tendo como espécies a objeção de consciência; a greve; a desobediência civil; o direito à revolução; e o princípio da autodeterminação dos povos (BUZANELLO, p. 17).

1.2.1 A objeção de consciência

Ocorre objeção de consciência quando um indivíduo se recusa a cumprir deveres conflitantes com suas convicções morais, políticas ou filosóficas, ignorando uma obrigação jurídica imposta a todos pelo Estado. Na objeção de consciência existe razoável nível de consciência, com alguma publicidade e sem agitação, com vistas a um tratamento alternativo ou alterações na lei.

Observa-se que a própria Constituição Federal de 1988 (CF) prevê a objeção da consciência, apresentando duas perspectivas: a primeira é uma recusa genérica de consciência (art. 5º, VIII, CF) e a segunda é uma recusa restritiva em relação ao serviço militar (art. 143, § 1°, CF).

1.2.2 O direito de greve

Quando trabalhadores entendem que seus direitos não estão sendo devidamente respeitados ou quando reivindicam novos direitos, pode-se, de forma organizada, exercer o direito de greve política. Ressalta-se que essa é uma medida de resistência lícita excepcional, semelhante ao estado de necessidade e à legítima defesa, por exemplo.

O art. 9º da Constituição da República assegura aos trabalhadores o direito de greve, esclarecendo que compete a eles a decisão do melhor momento de exercê-lo e dos interesses em questão e que os possíveis abusos podem ser punidos pela lei. Porém, há atividades e serviços essenciais que, dada sua relevância, apresentam regras próprias em relação à greve.

1.2.3 A desobediência civil

A desobediência civil é uma forma indireta de participação da sociedade, pois não possui participação suficiente junto às esferas do Estado para tornar-se ente político legítimo. Com isso, ocorre desconsideração da legitimidade de uma autoridade pública ou uma lei. Entre as propriedades da desobediência civil, encontram-se: não violência e ações públicas de caráter coletivo; sentimento de injustiça em relação à lei ou uma decisão por meio de pressão junto aos órgãos de decisão do governo; e propostas de reforma jurídica e política. Nota-se que não se pretende exatamente que o governo seja derrubado, mas que suas práticas sejam substituídas.

Em uma perspectiva direta, a desobediência civil se dá quando as leis do Estado são desafiadas de forma aberta (p. ex., campanhas públicas contra a discriminação racial nos EUA e na África do Sul, ou a campanha das Diretas Já, no Brasil). Em uma perspectiva indireta, ataques a leis isoladas desafiam as estratégias do Estado, sendo executados para mostrar publicamente a injustiça da lei e induzir o legislador a revogá-la. (p. ex., o movimento dos sem terra, que desafia a lei de proteção à propriedade privada e solicita a reforma agrária).

O art. 5º, § 2°, da Constituição brasileira assegura que os direitos e as garantias previstos em seu texto “não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Entre os quais, destacam-se sobretudo o princípio da proporcionalidade e o da solidariedade.

1.2.4 A autodeterminação dos povos

As nações podem organizar-se livre e politicamente, assegurando sua soberania, a isso se chama autodeterminação dos povos. Assim, escolhe-se a forma de governo (República ou Monarquia) e o sistema de governo (Presidencialismo, Parlamentarismo, Semipresidencialismo) de sua preferência. O Pacto Fundamental assegura que a autodeterminação dos povos é um princípio político de direito internacional (art. 4º, III, CF).

1.2.5 O direito à revolução

Quando um povo se sente extremamente prejudicado pela tirania de um governo autoritário, existe o direito à revolução, mesmo que para isso a violência seja utilizada. Destaca-se que a negação disso seria um atentado à dignidade humana (BUZANELLO, p. 20). Por entender que o governo ilegítimo passou dos limites, o povo pode fazer uso da força para reivindicar seus direitos.

Houve importantes movimentos revolucionários que afirmaram e justificaram o exercício do direito de resistência por meio da revolução, entre eles encontram-se:

• A Revolução Gloriosa: o direito de rebelião fundamentou a defesa filosófica da derrota e substituição de Jaime II por Guilherme III, pelo parlamento do Reino Unido (1688);

• A Revolução Americana: o direito de resistência ocuparia um papel principal nos escritos dos revolucionários norte-americanos. Além disso, foi citado na Declaração de Independência dos Estados Unidos, quando um grupo de representantes de vários estados assinou uma declaração de independência em relação à Inglaterra. Segundo a declaração, a lei natural assegura que o povo está dotado pelo Criador de certos direitos inalienáveis e pode alterar ou abolir um governo que destrua esses direitos;

• A Revolução Francesa: o direito de resistência também foi incluído na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) durante a Revolução Francesa, assim como na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1793.

1.2 Bobbio, Locke e o direito de resistência

Entende-se que o direito de resistência está intimamente relacionado aos direitos fundamentais e aos direitos humanos, assim, entre os autores que trataram dessa perspectiva, destacam-se aqui as posições de Bobbio e de Locke. O primeiro fez distinção entre direitos do homem unicamente naturais (equivalentes aos direitos humanos) e direitos do homem positivados (equivalentes aos direitos fundamentais), ensinando que “quando os direitos do homem eram considerados unicamente como direitos naturais, a única defesa possível contra a sua violação pelo Estado era um direito igualmente natural, o chamado direito de resistência” (BOBBIO, 1992, pp. 31, 32).

Locke, segundo a obra intitulada Two treatises of government, entende que repudiar um poder imposto pela força e não pelo direito, apesar de ser chamado de rebelião, não se trata de uma ofensa a Deus, mas é uma permissão Sua e tem Sua aprovação (LOCKE, 2004. § 196). Assim, afirma-se que a diferença entre um rei legítimo e um tirano é que o primeiro pensa que o povo se destina unicamente a satisfazer seus desejos, e o segundo reconhece ter sido elevado a tal dignidade para a promoção da riqueza e da propriedade do povo (idem, op. cit., § 200).

1.3 O direito de resistência segundo a jurisprudência

Por ser muito presente no dia a dia da sociedade, entre as formas de exercício do direito de resistência, escolheu-se o direito de greve para se pesquisar o ponto de vista do STF, ao interpretar o art. 9º da Carta Magna. Em relação ao caput do artigo, o Supremo Tribunal Federal (STF) entende que
A simples adesão à greve não constitui falta grave. (Súmula 316) O direito à greve não é absoluto, devendo a categoria observar os parâmetros legais de regência. (...) Descabe falar em transgressão à Carta da República quando o indeferimento da garantia de emprego decorre do fato de se haver enquadrado a greve como ilegal. (RE 184.083, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 7-11-2000, Segunda Turma, DJ de 18-5-2001). Saber se houve simples adesão à greve ou participação efetiva dos empregados no movimento paredista, capaz de sustentar a rescisão unilateral do contrato de trabalho, implica revolvimento da matéria fático-probatória, inadmissível no extraordinário. (RE 252.876-AgR, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 29-2-2000, Segunda Turma, DJ de 19-5-2000).


O § 1º do referido artigo diz que “a lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade”. Sobre ele, o STF, na MI 708, de relatoria do Min. Gilmar Mendes, afirma que
A disciplina do direito de greve para os trabalhadores em geral, quanto às ‘atividades essenciais’, é especificamente delineada nos arts. 9º a 11 da Lei 7.783/1989. Na hipótese de aplicação dessa legislação geral ao caso específico do direito de greve dos servidores públicos, antes de tudo, afigura-se inegável o conflito existente entre as necessidades mínimas de legislação para o exercício do direito de greve dos servidores públicos civis (CF, art. 9º, caput, c/c art. 37, VII), de um lado, e o direito a serviços públicos adequados e prestados de forma contínua a todos os cidadãos (CF, art. 9º, § 1º), de outro. (MI 708, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 25-10-2007, Plenário, DJE de 31-10-2008.) No mesmo sentido: MI 670, Rel. p/ o ac. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 25-10-2007, Plenário, DJE de 31-10-2008.


Por fim, o § 2º desse art. 9º, ao dizer que os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei, é interpretado pelo STF conforme segue:
O reconhecimento judicial da abusividade do direito de greve e a interpretação do alcance da Lei 7.783/1989 qualificam-se como matérias revestidas de caráter simplesmente ordinário, podendo traduzir, quando muito, situação configuradora de ofensa meramente reflexa ao texto da Constituição, o que basta, por si só, para inviabilizar o conhecimento do recurso extraordinário. (AI 282.682-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 14-5-2002, Segunda Turma, DJ de 21-6-2002).


2. O DIREITO DE RESISTÊNCIA NO FILME TROPA DE ELITE II

No filme Tropa de Elite II pode-se notar uma crítica à forma distorcida e até criminosa como agentes da segurança pública e políticos atuam para garantir e perpetuar seu domínio no poder, especialmente em áreas carentes do Rio de Janeiro, mas com ramificações até no Governo Federal. Critica-se a classe média, o governo, a polícia e obviamente os criminosos.

Mostra-se o lado oculto daqueles que deveriam ser os garantidores da ordem, daqueles que muitas vezes mostram-se como heróis, mas que no fundo são os principais articuladores de uma série de ilícitos. No geral, os personagens preocupam-se com interesses pessoais e têm aparência externa de moralidade com sangue corrupto correndo nas veias.

Esse filme mostra que os problemas de segurança, de coação, de tráfico de drogas e um sem número de irregularidades não são exclusividade dos delinquentes que diariamente povoam os noticiários. Por trás disso existe uma rede muito bem estruturada que envolve desde policiais até a mais alta esfera de poder do País. Portanto, demonstra que a solução para tais problemas da sociedade não é tão simples quanto se pode pensar.

Esse quadro de violência e corrupção torna Roberto Nascimento, interpretado por Wagner Moura, um homem embrutecido, um tanto descrente da boa-fé de seus colegas, subordinados e superiores. Ele tenta trazer de volta a dignidade e a honestidade não só ao BOPE (Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro) como à segurança pública do estado e à política, indiretamente.

Depois de uma operação mal sucedida, o Ten-Cel. Nascimento foi afastado do BOPE. Em seguida, passou a ocupar cargo de Subsecretário do Serviço de Inteligência da Secretaria de Segurança Pública do Estado. Por estar inserido na cúpula de segurança, percebeu que uma solução definitiva estava longe de ser alcançada porque os principais articuladores dos crimes se encontravam naquele lugar.

Nas palavras de José Carlos Buzanello
O direito de resistência, por fim somente se justifica no caso de descumprimento de algum direito primário, (...). É também um direito para se ter direito, isto é, um direito secundário que supõe que seu exercício está em favor do gozo de um direito primário, como a vida, a justiça, a dignidade humana, a propriedade.


Visto isso, optou-se por analisar brevemente o referido filme sob a perspectiva da objeção de consciência, pelo fato de sua realização partir do indivíduo que sozinho, em um primeiro momento, sente-se desobrigado a levar a cabo uma solicitação que não coadune com seus princípios.

Como primeiro exemplo, tem-se a sequência em que, depois de uma rebelião de presos, o BOPE foi autorizado a invadir o presídio, mas apesar disso o personagem Fraga, Irandhir Santos, se dispôs a entrar na cela e resolver o problema de forma pacífica. Havia três posturas possíveis: ignorar o conflito entre as facções e deixar que os bandidos de autoeliminassem; invadir e acabar com o conflito à força; e resolver por meio do diálogo. Esta última foi aplicada e surtiu efeito.

Outro caso seria o do personagem André Matias, vivido por André Ramiro, morto por companheiros de farda, quando tentou desmantelar o esquema de corrupção e exploração de serviços em comunidade carente do RJ. Apesar dos muitos corruptos e corruptores que circulam nos meios policiais e políticos, ainda há os que se recusam a fazer parte de esquemas que, apesar de serem travestidos de legalidade, não representam a melhor atitude na busca dos interesses da coletividade.

Como último exemplo, em depoimento na Assembleia Legislativa, o Ten-Cel. Nascimento disse que quando um policial mata não puxa o gatilho sozinho e que metade dos deputados estaduais, pelo menos, deveria estar na cadeia. Nessa ocasião, apontou o deputado Fortunato como chefe de uma das principais milícias. A denúncia, o não silenciar-se, foi uma postura que contrariou a “lógica do omitir-se” da cúpula policial e política do estado.

CONCLUSÃO

É sempre produtiva a seguinte pergunta: Os destinatários do sistema jurídico teriam um dever moral de aceitar o que está prescrito pelo simples fato de ser lei, independentemente de seu conteúdo? Se fosse assim, a moral seria um fundamento do direito. Sobre isso o positivismo possui simultaneamente duas vertentes: a positivista moral entenderia que, por mais imoral que seja, o que está prescrito não perde sua eficácia social; já a positivista neutral diria que os deveres jurídicos, os únicos estabelecidos pelo direito, não deveriam chocar-se com os deveres morais, mas podem fazê-lo (ALEXY, 2005).

Segundo Locke (2004, § 232), quem usa a força desvinculada do direito se coloca em estado de guerra contra as vítimas dessa força, assim os vínculos antigos se rompem, os direitos são interrompidos e todos têm o direito de se defender e resistir à agressão. Portanto, independentemente da positivação, como ocorre na Constituição Portuguesa e em outros documentos citados, o direito de resistência é algo intrínseco ao ser humano.

Entende-se, porém, que esse fato também poderia produzir um quadro de anomia, caso se considere a ausência do Estado e a possibilidade de cada um ser o que quiser, escolhendo seus próprios valores na sociedade em que vive. Para que isso não ocorra, destaca-se a necessidade de o direito positivo ser definido com base na legalidade do ordenamento e na eficácia social.

O autor do artigo que serviu de base para a classificação do direito de resistência apresentada neste trabalho defende que o direito de resistência seja incluído na Constituição por meio de emenda constitucional e isso parece apropriado. Além de garantir o direito, seria uma espécie de orientação para o povo, para que este não se subjugasse a um governo injusto e não permitisse que uma série de direitos seus fosse ignorada.

Finalizando, entende-se que existe um valor moral que direciona os indivíduos a obedecerem ao direito, desde que este não seja extremamente injusto, viole outros direitos ou esteja desvinculado da moral. Apesar disso, não é simples a tarefa de determinar o que seria extremamente injusto, dada a multiplicidade de dilemas morais que envolvem a sociedade. Assim, acredita-se que a legitimidade do direito de resistência e seu limite de atuação ainda tem espaço para muita discussão, dado o difícil tracejar do limite entre direito e moral, entre justiça e injustiça.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXY, Robert. La Institucionalización de La Justicia. Granada: LAEL, 2005. pp. 17-29.

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. pp. 31,32.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: . Acesso em: 16 dez. 2012.

BUZANELLO, José Carlos. Direito de Resistência. Disponível em: . Acesso em: 15 dez. 2012.

DECLARAÇÃO dos Direitos do Homem e do Cidadão (1793). Disponível em: . Acesso em: 15 dez. 2012.

DECLARAÇÃO Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: . Acesso em: 15 dez. 2012.

DERECHO de rebelión. Disponível em: . Acesso em: 15 dez. 2012.

LOCKE, John. Two treatises of government: a critical edition with an introduction and notes by Peter Laslett. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.

MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 1997. p. 39. In: SANTOS, Vanessa Flain dos. Direitos Fundamentais e Direitos Humanos. Disponível em: < http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/files/anexos/14739-14740-1-PB.htm>. Acesso em: 16 dez. 2012.

PORTUGAL. Constituição da República Portuguesa. Disponível em: . Acesso em: 16 dez. 2012.

Abuso de Direito

INTRODUÇÃO

Segundo Aristóteles, em A política, o homem é um animal gregário por excelência, ou seja, não vive sozinho, mas em constante relação com seus pares. Para aquele filósofo grego, as pessoas dependem umas das outras para sua própria subsistência e, desde seu surgimento, sempre viveram em grupos. Assim, criaram-se grupos familiares que evoluíram até alcançar o estágio de sociedade organizada (RICCITELLI, p. 1, 2007).

Dando um salto no tempo, é patente que a vida em sociedade exige dos indivíduos regras, positivadas ou não, que regulem condições mínimas para a boa convivência. Em um mesmo lugar, em um mesmo momento, os indivíduos querem que o exercício de seus direitos seja garantido. Porém, pelo fato de nem sempre terem noção dos limites, não medem a intensidade desse exercício e acabam interferindo na esfera jurídica alheia.

Tendo em vista essa situação, o Código Civil de 2002, no art. 187, afirma que “comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Isso é uma limitação ética que sujeita à reparação civil o indivíduo que, no exercício de um direito, causa mal a outrem. Ou seja, uma tentativa de evitar o desvio de finalidade de um direito.

Percebe-se, com isso, que a lei não se preocupa apenas com o caráter objetivo do exercício de um direito, mas também com o subjetivo. O direito de propriedade, a liberdade de expressão e tantos outros não podem ser utilizados com a intenção de prejudicar alguém, sem proveito para quem os exerce.

Por entender a importância da definição de limites para o convívio em sociedade, este trabalho tem o objetivo de definir abuso de direito segundo a doutrina, analisando o entendimento de dois dos principais doutrinadores nacionais. Além disso, analisar-se-á o Caso Ellwanger, em que o exercício da liberdade de expressão leva seu titular à mais alta corte do País.

1 O ABUSO DE DIREITO E A DOUTRINA

Até a promulgação do Código Civil de 2002, não se podia afirmar que existia uma solução satisfatória para a problemática do abuso de direito. Havia autores, como Marcel Planiol, que enxergavam uma contradição interna na utilização dos termos, pelo fato de a ideia de abuso ser contrária ao direito e o conceito de direito ser avesso à noção de qualquer abuso. Por outro lado, havia o entendimento de que o exercício do direito jamais poderia ser visto como algo ilícito, mesmo que causasse ruína, desgraça ou humilhação a outrem (PEREIRA, 2012, p. 565, 566).

Conforme o ensinamento aristotélico, o ser humano é um animal social. Assim, a união entre os homens é natural, pois o homem é naturalmente carente e necessita de coisas e de outras pessoas para se sentir pleno. Dessa forma, viu-se a necessidade de encontrar um meio-termo, um limite para que os indivíduos conciliassem o exercício de seu direito e o respeito à esfera jurídica alheia, garantindo a boa convivência entre os homens. A doutrina do abuso de direito se firma nesse entendimento.

Segundo Caio Mário (idem, p. 566, 567), o abuso de direito fundamenta-se na regra da relatividade dos direitos; na dosagem do conteúdo do exercício, quando admite que se o titular de um direito exceder o limite regular de seu exercício agirá sem direito; e na configuração do animus nocendi, estabelecendo que o exercício do direito que tem o objetivo de prejudicar alguém deve ser reprimido.

Atualmente, considera-se inadmissível que alguém cause prejuízo evitável a outrem sob alegação de estar exercendo um direito seu, com intuito de fazer o mal e sem proveito próprio. É interessante observar a intenção do sujeito do direito, pelo fato de haver situações em que se causa certo dano a outrem que são perfeitamente lícitas, como a cobrança de uma dívida. Neste caso, o dano ao devedor seria inevitável, pois é intrínseco ao exercício regular e normal do direito.

Carlos Roberto Gonçalves (2009, p. 467, 468) ensina que os romanos entendiam que quem agisse dentro de seu direito não prejudicaria a ninguém. Infelizmente, essa ótica individualista que justificava os excessos e abusos do direito foi aplicada durante anos. Na atualidade, porém, as sociedades civilizadas reconhecem a existência de um dever de não prejudicar a outrem. Contudo, é preciso frisar que nos casos de abuso de direito não ocorre uma violação objetiva dos limites previstos em lei. O que se dá é um desvio da finalidade social a que o direito se destina.

Há inúmeros casos em que se encontra abuso no exercício de um direito. Por exemplo, alguém que, entendendo exercer seu direito de propriedade, transforma seu terreno situado em área residencial em um depósito de lixo, com a intenção de desvalorizar os demais imóveis para uma futura possibilidade de compra. O direito do proprietário não pode colocar em risco a saúde da vizinhança, do solo, do subsolo e do ar (art. 1.228, §§ 1º, 2º, do CC).

A mesma constituição que garante o direito de propriedade estabelece que a propriedade deve atender à sua função social (art. 5º, XXII, XXIII, da CF; art. 5º, da LInDB). Assim, em uma ponderação entre o direito de propriedade e a dignidade da vizinhança, prevalecerá esta última. Nesse caso, o interesse existencial dos demais moradores se sobreporá ao econômico do proprietário do terreno.

Entendendo que o abuso de direito tem relevância na maioria dos campos do direito, por ser uma forma de repressão à aplicação antissocial de direitos subjetivos (GONÇALVES, 2009, p. 468), na sequência, pretende-se analisar o Caso Ellwanger, em que alguém, alegando exercer sua liberdade de expressão, divulga material de conteúdo racista. Dessa forma, perceber-se-á como as opiniões dos ministros do STF se dividiram ao julgar os limites da liberdade de expressão, garantida pelos arts. 5º, IV, IX; 220, caput, da Constituição Federal.

2. CASO ELLWANGER: UM CONFRONTO ENTRE A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E O RACISMO*

2.1 Apresentação do caso

Em 1986 o Movimento Popular Anti Racista (MOPAR), formado pelo movimento judeu, movimento negro e movimento de justiça e direitos humanos, entrou com uma denúncia contra o editor gaúcho Siegfried Ellwanger Castan, alegando o conteúdo racista de suas obras, dizendo que elas denegriam a imagem do povo judeu e lhe aplicavam um valor pejorativo. Em 1990 uma nova denúncia foi realizada, instaurando-se inquérito policial que foi remetido ao Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul (MP-RS) e recebido em 1991.

O MP-RS determinou a busca e apreensão dos exemplares que continham o conteúdo racista, entretanto Ellwanger não acatou tal decisão, e em 1996 foi flagrado vendendo os exemplares na Feira do Livro de Porto Alegre, o que gerou uma nova denúncia, que foi recebida em 1998. A defesa sustentou que tais obras do escritor não tinham conteúdo racista, e sim, um cunho ideológico contra o movimento sionista internacional. Porém, a defesa não obteve sucesso na sustentação e o escritor foi condenado a dois anos de reclusão.

Em dezembro de 2002, a defesa de Ellwanger ajuizou pedido de habeas corpus no Supremo Tribunal Federal (STF), como recurso à condenação imposta pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em 1991, pela publicação de livros como “Holocausto judeu ou alemão? Nos bastidores da mentira do século” e “Os Conquistadores do Mundo: os verdadeiros criminosos de guerra e Hitler, culpado ou inocente?”. O pedido de habeas corpus foi negado e a condenação foi reiterada pelo STF em 2003.

2.2 O entendimento do STF

Para chegar à decisão, os ministros do STF, basicamente, discutiram o conceito de racismo, liberdade de expressão e manifestação do pensamento individual. Naquela ocasião, o relator Moreira Alves e os ministros Ayres Brito e Marco Aurélio foram favoráveis ao habeas corpus, por entenderem que o povo judeu não pode ser considerado uma raça.

Além disso, segundo eles haveria uma diferença entre a divulgação de ideias de teor antissemita e a incitação de práticas antissemitas. Dessa forma, o editor não poderia ser condenado por ter feito uma revisão histórica do conflito entre alemães e judeus na Segunda Grande Guerra. No entanto, a discussão desenvolvida pela maioria dos ministros não privilegiou a interpretação gramatical ou literal do texto constitucional a respeito do racismo (arts. 4º, VII; 5º, XLII, CF).

Para sustentar seu voto, o ministro Maurício Corrêa, v.g., argumentou que o conceito convencional de raça foi abolido pela genética e que a intolerância humana é que ainda divide seres humanos em raças. Já o ministro Celso de Mello, por entender que a única raça existente é a espécie humana, afirmou que houve ofensa à dignidade dos judeus por razões de cunho racista. Gilmar Mendes, por sua vez, também indeferiu o pedido, por compreender que em uma sociedade plural não se pode priorizar a liberdade de expressão em detrimento da igualdade e da dignidade humana, daí a previsão constitucional de inafiançabilidade e imprescritibilidade para o crime de racismo (art. 5º, XLII, CF).

Ao final do julgamento, o STF entendeu o racismo um conceito político-social, que se desenvolveu ao longo do tempo e acabou gerando discriminação e segregação. Logo, no entendimento dos ministros do STF o antissemitismo presente nas obras do escritor foi considerado como incentivo ao racismo, sendo, portanto, aplicáveis as sanções penais previstas. Assim, o STF negou o pedido por 8 votos a 3, considerando que o ato de Ellwanger tinha sido típico do crime de racismo e que a divulgação das obras em questão poderia pôr em risco a segurança dos judeus residentes no Brasil (BRASIL, 2001).

2.3 O que é liberdade de expressão?

A liberdade de expressão é o direito de manifestação e exteriorização do pensamento sem prévia censura, sem nenhum tipo de opressão por parte do Estado ou de outros, apresentando-se assim como um dos direitos mais importantes em um Estado Democrático de Direito (art. 5º, IV, da CF). Enfatiza-se que o homem não consegue viver isolado, pois é um ser social, isto é, possui intrinsecamente a necessidade de viver em sociedade, de se relacionar, trocando ideias e opiniões com outros homens. Por isso, essa liberdade é fundamental e é tutelada pela Constituição.

Não obstante, sob a ótica do ministro Marco Aurélio, a necessidade de sempre expressar um pensamento politicamente correto seria uma espécie de tirania. Afirmou ainda que as pessoas não podem ser obrigadas a pensar da mesma forma que as outras. Assim, define-se liberdade de expressão como o direito de expressar um pensamento independentemente de fazer parte de uma linha contramajoritária.

O indivíduo, obviamente, deve sujeitar-se ao direito de resposta dos possíveis prejudicados, proporcional ao agravo, e ao pagamento de indenização caso haja dano material, moral ou à imagem (art. 5º, V, da CF). Além disso, nos casos em que a suposta liberdade de expressão configurar um racismo disfarçado, em função de raça, cor, etnia, religião, origem ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência, há previsão de pena de reclusão (art. 5º, XLII, da CF; art. 140, § 3º, do CP).

2.4 Quais seriam os limites das restrições à liberdade de expressão?

Tal indagação foi respondia com os votos dos ministros Celso de Mello e Gilmar Mendes, ao dizerem que a liberdade de expressão, apesar de ser uma garantia constitucional, não poderia ter um caráter absoluto, tendo assim limites jurídicos, pois não poderia a partir do uso da liberdade de expressão justificar um ato que é considerado um ilícito penal, como o racismo.

O princípio da dignidade da pessoa humana é um valor moral e espiritual inerente à pessoa e constitui o princípio máximo em um Estado Democrático de Direito, sendo inalienável e irrenunciável. Immanuel Kant foi o responsável pela formulação deste pensamento ao dizer que o indivíduo deveria ser tratado como um fim em si mesmo, e não como um meio, um objeto, protegendo assim o ser humano contra qualquer ato de cunho degradante e desumano, proporcionando a garantia de uma vida saudável e digna. Assim sendo, a dignidade da pessoa humana é um dos mais importantes bens jurídicos tutelados pelo ordenamento.

Considerando que as normas jurídicas constitucionais são hierarquicamente equiparadas, quando há colisão entre duas ou mais delas, os valores em questão devem ser harmonizados, equilibrando-os da melhor maneira possível. Além disso, quem aplica a lei pode usar o princípio da proporcionalidade como um instrumento para tomar a decisão mais adequada (LIMA, 2002). Dessa forma, entende-se que a liberdade de expressão de um indivíduo não pode chocar-se com o princípio da dignidade da pessoa humana. Portanto, a decisão do STF em relação ao Caso Ellwanger foi acertada.

CONCLUSÃO

A vida em sociedade impõe que os seres humanos busquem a boa convivência e encontrem maneiras de garantir o exercício de direitos de forma que não haja prejuízo alheio. A máxima que diz “Meu direito começa quando o seu termina” é muito difundida, mas perigosa, por não ser possível precisar os limites que o outro se impôs no exercício de um direito, tampouco sua finalidade. Assim, seria possível que o direito de um indivíduo nunca viesse a ser exercido, por ser o direito do outro muito extenso.

Com o objetivo de solucionar conflitos, tendo em vista o ideal de justiça, o Código Civil, em seu art. 187, afirma praticar ato ilícito quem exceder de forma manifesta os limites impostos, a finalidade econômica ou social, no exercício de um direito. Entende-se então que, diferentemente do expresso na máxima acima, o direito dos indivíduos devem coexistir de forma harmoniosa. Assim, não se justifica que a coletividade seja prejudicada, ainda que moralmente, pela ação ou omissão de alguém que ignora os limites impostos à prática de um direito.

A análise do Caso Ellwanger foi uma boa oportunidade de refletir sobre a forma como alguns indivíduos exercem seus direitos. A garantia constitucional de liberdade de expressão não pode ser subterfúgio para agredir a honra, a dignidade alheia. A Constituição de 1988 garante a liberdade de expressão, mas também garante a proteção à honra. Quando se ponderam as duas garantias, a honra pesa mais. Ou seja, em nome da honra alheia não se deve propagar ideias ofensivas, sob pena de responder judicialmente, como ocorrido no caso analisado.

Como o bom senso não é algo que possa ser medido e dificilmente alguém reconhece não tê-lo, faz-se necessário que o direito apresente limitações ao exercício dos direitos, para garantir a boa convivência humana e para que todos tenham minimamente a garantia de exercício de direitos. É um círculo virtuoso, em que o direito de alguém é limitado para garantir o direito de outrem e o deste é limitado para garantir o daquele.

Espera-se que este trabalho tenha sido útil para demonstrar que, pelo fato de se viver em sociedade, não se pode fazer nada irresponsavelmente. Ainda que não se viole o direito de forma objetiva, deve-se verificar se subjetivamente há respeito à coletividade. Por fim, entendeu-se que o direito não deve caminhar afastado da moral.

*BRASIL. Supremo Tribunal Federal. STF nega Habeas Corpus a editor de livros condenado por racismo contra judeus. 2001. Disponível em: . Acesso em: 28 dez. 2012.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A LIBERDADE de expressão no contexto constitucional brasileiro. 2012. Disponível em: . Acesso em: 28 dez. 2012.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF). Disponível em: . Acesso em: 30 dez. 2012.

_____. Decreto-Lei 4.657, de 04 de setembro de 1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (LInDB). Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657.htm>. Acesso em: 30 dez. 2012.

_____. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil (CC). Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm>. Acesso em: 27 dez. 2012.

_____. Supremo Tribunal Federal. STF nega Habeas Corpus a editor de livros condenado por racismo contra judeus. 2001. Disponível em: . Acesso em: 28 dez. 2012.

CONSULTOR Jurídico. Editor nazista é condenado a quase dois anos de reclusão. 2004. Disponível em: . Acesso em: 29 dez. 2012.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009.

LIMA, George Marmelstein. A hierarquia entre princípios e a colisão de normas constitucionais. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 54, 1 fev. 2002. Disponível em: . Acesso em: 28 dez. 2012.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 25. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

RICCITELLI, Antonio. Direito constitucional: teoria do estado e da constituição. 4. ed. São Paulo: Manole, 2007.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

O antigo, mas sempre atual, dilema entre Direito e Moral

RESENHA

Livro resenhado: ALEXY, Robert. La institucionalización de la justicia. Tradução de J. A. Seoane; E. R. Sodero; P. Rodríguez. Granada: LAEL, 2005. (96 pp.)

O antigo, mas sempre atual, dilema entre Direito e Moral

La Institucionalización de la Justicia, do jusfilósofo alemão Robert Alexy, em seu primeiro capítulo, apresenta um artigo que trata da relação entre direito e moral. Sobre a possibilidade de interdependência entre estes, há duas concepções: uma positivista e outra não positivista (ou jusnaturalista). A primeira defende as teses da separabilidade e da separação entre direito e moral; enquanto a segunda, em contraposição àquela, defende uma versão da vinculação entre os dois elementos que intitulam o artigo em questão.

Em sua abordagem sobre a tese da separabilidade, Alexy diz que esta concepção positivista não vê nenhuma relação obrigatória entre direito e moral. Ou seja, as afinidades que se encontram entre eles seriam apenas casuais. Dessa forma, seria negada a existência de interdependência entre direito e moral ou entre o que o direito é e aquilo que deveria ser.

Segundo Alexy, essa tese define a versão mais fraca do positivismo, pois afirma ser possível atribuir qualquer conteúdo ao direito, independentemente de seu compromisso com a justiça. Observa-se que isso não exclui a possibilidade uma disposição constitucional, eventualmente, conter princípios morais que transformem direitos humanos em direito positivo. Assim, esse entendimento positivista assevera que a inclusão de valores morais ao direito seja algo possível, mas não imprescindível, portanto, o direito poderia prescindir de moralidade. Nesses casos, o ordenamento jurídico se autojustificaria.

A tese da separação, por sua vez, é a versão mais forte do positivismo. Esta, além do exposto sobre a separabilidade, defende que existem razões normativas para definir o direito de modo que os elementos morais sejam excluídos. Percebe-se, então, que se trata de dois argumentos distintos. Enquanto a tese da separabilidade observa o que é necessário e analítico, a tese da separação busca argumentos normativos e tenta identificar a melhor definição de direito dentre as várias possíveis. Desse modo, o entendimento positivista de separação mostra que é preferível a exclusão à inclusão de valores morais ao direito.

Caso se considere essa tese correta, a legalidade conforme o ordenamento e a eficácia social seriam itens diferenciadores, o que daria margem à identificação de diferentes vertentes do positivismo jurídico. Portanto, cabe ressaltar a diferença entre eficiência e eficácia de uma lei. Enquanto esta se relaciona ao cumprimento ou não de um ordenamento jurídico –voluntária ou coercitivamente –, aquela está relacionada ao fato de uma lei servir ou não para aquilo que foi criada. Consequentemente, uma lei pode ser eficaz, caso os indivíduos a ela submetidos a cumpram rigorosamente, mas ineficiente, se os objetivos iniciais não forem alcançados.

Em relação à legalidade do ordenamento jurídico, a seu turno, é sabido ser possível que haja normatividade sem moralidade, porém esta não seria um item necessário ou desejável que diferenciasse o conceito de direito segundo os positivistas. Por outro lado, os jusnaturalista concordam que o conceito de direito não pode, ou não deveria, desvincular-se da moralidade. Ao considerar isso, nota-se a existência de duas teses de vinculação: uma forte, que nega a tese da separabilidade, e outra fraca, que nega a tese da separação, pois entende a inclusão como algo desejável ou preferível, mas não imprescindível.

Uma visão jusnaturalista pura e mais radical substituiria a eficácia social e a legalidade do ordenamento pela correção moral, o que seria um fio condutor ao anarquismo(1). Entende-se que esse fato também poderia produzir um quadro de anomia, caso se considere a ausência do Estado e a possibilidade de cada um ser o que quiser, escolhendo seus próprios valores na sociedade em que vive. Para que isso não ocorra, destaca-se a necessidade de o direito positivo ser definido com base na legalidade do ordenamento e na eficácia social.

Visto isso, discute-se se a eficácia social e a legalidade do ordenamento devem estar vinculadas ou não à correção moral. Daí seguem três vinculações possíveis: a) quando há inclusão de valores morais no direito positivo; b) quando a moral delimita o direito positivo; e c) quando a moral aponta para uma obrigação de obediência ao direito positivo. Dessas vinculações decorrem três questionamentos: a) que valores seriam incluídos? b) que limites seriam dados? e c) como seria essa fundamentação?, respectivamente.

Sobre a questão da inclusão, positivistas e jusnaturalistas são harmônicos ao entenderem que o direito possui uma estrutura aberta, por isso, há lacunas do direito positivo que só se resolvem com apoio de uma argumentação de base moral. Lembre-se que, conforme o art. 4º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, quando houver omissão da lei, o juiz poderá decidir o caso com o apoio dos costumes, dentre outras fontes supletivas de direito. Se não fosse assim, na omissão da lei o juiz aplicaria seus próprios valores e não os da comunidade necessariamente. O costume “vigora e tem cabimento, até onde não chega a palavra do legislador, seja para regular as relações sociais em um mesmo rumo que o costume antes vigente, seja para estabelecer uma conduta diversa da consuetudinária” (PEREIRA, 2012, p. 57). Assim, os princípios morais exercem um papel corretivo em relação ao direito positivo.

A propósito, é a urgência da inclusão de princípios e argumentos morais no direito que diferencia o positivismo do jusnaturalismo. Enquanto o direito prestigia certos valores morais, a moral serve de fiel da balança nos casos em que o direito positivo for omisso, configurando, assim, uma relação de retroalimentação. Como se vê, a aplicação de uma lei é a explicitação de que determinado valor moral deve ser observado e a indicação de uma conduta que deve ser corrigida. Se o direito abandonasse essas atitudes, a condenação de alguém seria apenas uma mostra do poder estatal. Ressalva-se que, apesar de a ideia de justiça estar intimamente ligada ao direito, há leis moralmente reprováveis que mesmo assim possuem validade jurídica.

Em relação ao limite que a moral imporia ao direito, aqui também se visualiza um quadro de possível anarquia caso uma norma jurídica perdesse sua validade pelo fato de, até certo grau, não ser condizente com um preceito da moralidade, que não pode ser confundida com moralismo. Então, afirmar que uma injustiça extrema não é direito pode suscitar dois pontos de observação: o do aplicador da lei e o do destinatário dela.

Para exemplificar, recorre-se à peça Antígona, em que Creonte, representante do direito positivo, entende ser injusta a não obediência de um edito seu; enquanto a personagem que dá nome à tragédia, símbolo da defesa do direito natural, entende ser injusto o não sepultamento de seu irmão, o que contrariaria uma tradição ligada à religiosidade de seu povo. Os positivistas diriam que a posição de Creonte preservaria a segurança jurídica, sob pena de várias outras leis serem anuladas pela escusa de não serem adequadas à moral ou aos costumes. Por sua vez, os jusnaturalistas poderiam argumentar que as honras que envolviam o sepultamento de um morto eram anteriores ao edito de Creonte.

O terceiro questionamento sobre a relação entre direito e moral tenta responder, basicamente, à seguinte pergunta: Os destinatários do sistema jurídico teriam um dever moral de aceitar o que está prescrito pelo simples fato de ser lei, independentemente de seu conteúdo? Se fosse assim, a moral seria um fundamento do direito. Sobre isso o positivismo possui simultaneamente duas vertentes: a positivista moral entenderia que, por mais imoral que seja, o que está prescrito não perde sua eficácia social; já a positivista neutral diria que os deveres jurídicos, os únicos estabelecidos pelo direito, não deveriam chocar-se com os deveres morais, mas podem fazê-lo.

Ilustrativamente, lembre-se do auxílio-moradia retroativo que a Assembleia Legislativa de Pernambuco concedeu a políticos com mandato de deputado estadual entre 1994 e 1997, mesmo para aqueles com residência em Recife, sob a alegação de que eles estariam fazendo jus à equiparação com os deputados federais(2). A aprovação de um auxílio do tipo citado torna-o legal. Apesar de ir de encontro à moral, os positivistas diriam que mesmo assim ainda possui eficácia social ou que não deveria ser aprovado, mas pode. Por outro lado, os jusnaturalistas veriam nisso um caso de injustiça extrema, visto que quem residia em Recife no período citado não teve gastos com moradia para participar das atividades parlamentares.

Sobre a objeção de um dever moral geral de obediência ao direito, existem duas classes: uma cuida de anular os fundamentos de tal dever e a segunda, de fazê-los retroceder. A primeira diz que em alguns casos a não observação de um preceito jurídico não traz consequências negativas para a resolução de conflitos e a cooperação social. São casos em que não haveria testemunhas de que um preceito jurídico não foi observado. Aí, pode-se discutir se o que importa para o juízo moral são as ações ou as regras, centro do debate dos utilitaristas. Além disso, é sabido que dificilmente se cometerá um delito que não prejudique nenhuma pessoa e sem testemunhas. A segunda trata de casos em que a vantagem do infrator significa a desvantagem da coletividade, ainda que dificilmente seja comprovado o ato.

Finalizando, entende-se que existe um valor moral que direciona os indivíduos a obedecerem ao direito, desde que este não seja extremamente injusto, viole outros direitos ou esteja desvinculado da moral. Apesar disso, não é simples a tarefa de determinar o que seria extremamente injusto, dada a multiplicidade de dilemas morais que envolvem a sociedade. Assim, acredita-se que o embate ideológico entre jusnaturalistas e positivistas ainda tem espaço para muita discussão, dado o difícil tracejar do limite entre direito e moral.


Referências Bibliográficas

ALEXY, Robert. La Institucionalización de La Justicia. Granada: LAEL, 2005. pp. 17-29.

BRASIL. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Lei nº 4.657 de 4 de setembro de 1942.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 25. ed. RJ: Forense, 2012. pp. 56, 57.

1) Entenda-se aqui anarquismo como um estilo em que “deve-se viver de acordo com a natureza, sem a preocupação de obter bens, respeitar convenções ou submeter-se às leis ou às instituições sociais” (DALLARI, 2012), e não em seu sentido pejorativo de desordem ou vandalismo.

2) Cf. LACERDA, Angela. Deputados de PE recebem auxílio-moradia dos anos 90. O Estado de São Paulo. Disponível em: . Acesso em: 05 abr. 2012.

terça-feira, 31 de julho de 2012

Antígona: Uma breve análise das questões morais e jurídicas na tragédia tebana

INTRODUÇÃO

A peça Antígona é a última da Trilogia Tebana escrita por Sófocles, poeta grego que viveu no século V a.C., e dá sequência a Édipo Rei e Édipo em Colono. O palco dos acontecimentos é Tebas, cidade que fora governada por Laio, pai de Édipo. Quando este, desconhecendo o laço paternal, matou aquele, foi seu tio Creonte quem governou a cidade até que Édipo se tornasse o rei.

Depois de Édipo ter deixado Tebas por causa de seu erro, Etéocles e Polinice, filhos de Édipo e Jocasta, em comum acordo, alternam o governo da cidade em lugar de seu pai. Porém, depois de um período, Eteócles recusou-se a ceder seu lugar ao irmão, que declarou guerra para conquistar a coroa. Descontente, Polinice juntou-se com Adrasto, rei de Argos, e outros guerreiros e lançou a expedição dos Sete contra Tebas, iniciando uma guerra para retomar a coroa.

Durante uma batalha, os irmãos se mataram um ao outro, e Creonte, outra vez no poder, rendeu homenagens a Etéocles antes de sepultá-lo e instituiu um édito que proibia o sepultamento e as honrarias a Polinice previstos pela tradição funerária ligada à religião. Antígona, irmã dos dois, inconformada com o desrespeito ao costume sagrado, decidiu desobedecer às ordens reais e dar um sepultamento digno a Polinice.

É a partir daí que este trabalho pretende abordar as questões morais e jurídicas que envolvem essa tragédia tebana. Encenada e estudada ao longo dos séculos por discutir os limites entre o direito natural e o direito positivo, Antígona agora servirá de base para uma análise que não pretende ser exaustiva ou linear, mas que deseja discutir brevemente temas como crimes contra a vida; tipos de punição; religiosidade; tirania; conceito de justiça; desigualdade entre homens, mulheres e escravos na sociedade tebana.

1. ANÁLISE DAS QUESTÕES MORAIS E JURÍDICAS EM ANTÍGONA

1.1 Atentados contra a vida

Motivada pelo costume sagrado, Antígona assumiu o dever de sepultar Polinice, que matou Etéocles e foi morto por ele. Em relação aos atentados contra a vida, destacam-se da peça o fratricídio, o suicídio e o regicídio. O primeiro está relacionado ao homicídio entre irmãos, o segundo é o ato intencional de tirar a própria vida e o terceiro é o homicídio de um governante.

Apesar dos laços fraternais, Polinice e Etéocles entendiam que o domínio da cidade estaria acima das ligações familiares, por isso não se pouparam um ao outro. A personagem que dá nome à peça, ao ver-se emparedada e condenada à morte, antecipa-a, enforcando-se com uma corda de sua cintura. Hêmon, noivo de Antígona e filho de Creonte, indignado ao ver sua amada morta, preferiu suicidar-se. Na sequência, Eurídice, mãe de Hêmon, desconsolada pela morte do filho, também se mata.

Observa-se que antes de suicidar-se, Hêmon tentou ferir seu pai, mas este afastou-se e não se feriu. Caso aquele conseguisse seu intento e ferisse seu pai de morte, seria um caso de regicídio e não de parricídio exclusivamente. A motivação do crime seria a insatisfação com a punição que Creonte deu a Antígona, que não foi motivada por ordem do futuro sogro, mas do tirano de Tebas.

Obviamente, os atentados descritos acima não podem ser analisados apenas sob a ótica do século XXI. Naquele tempo e naquela sociedade, a morte era preferível à desonra e ao banimento. Veja-se o que disse Antígona a Creonte quando viu que não teria escapatória: “Que vou morrer, bem o sei; é inevitável; e morreria mesmo sem o teu decreto. E para dizer a verdade, se morrer antes do meu tempo, será para mim uma vantagem! Quem vive como eu, envolta em tanto luto e desgraça, que perde com a morte?” (SÓFOCLES, 2003 p. 96).

Essa atitude extremada foi uma maneira de levar às últimas consequências uma insatisfação. Ainda hoje há muitos gregos cometendo o suicídio por não concordarem com a atual política grega e por terem sido prejudicados por ela.

1.2 Punições

Dentre os muitos tipos de punição, como a prisão por um crime ou a escravização de um prisioneiro de guerra, Antígona apresenta duas práticas que ainda podem ser encontradas em alguns países fundamentalistas islâmicos, e.g.: o apedrejamento e o emparedamento. Esta foi a punição dada a Antígona, apesar de aquela ter sido a punição prometida aos desobedientes.

O emparedamento foi uma espécie de sepultamento em vida àquela que já estava morta sentimentalmente pela perda do irmão. Como disse Tirésias, o profeta cego de Tebas, “Para que matar pela segunda vez quem já não vive?” (Ibdem, p. 113). As pedras da caverna foram a sepultura que o destino reservou para a filha de Édipo que, movida por seu amor fraternal, em um ato heroico, deu sepultura ao irmão. A honra deste foi a desonra e a punição daquela.

Caso se considere apenas a desobediência, a personagem que dá nome à tragédia recebeu o que merecia por ter ido de encontro à determinação real, porém existem outros detalhes que merecem observação: o objetivo da desobediência não foi questionar a legitimidade de Creonte como governante, mas aquela proibição específica. Além disso, não foi por sua própria vaidade, mas para observar uma tradição funerária de reconhecida importância para a sociedade tebana, inclusive o próprio Creonte, que rendeu homenagens a Etéocles.

1.3 Conceito de justiça

Em Antígona, aborda-se a justiça sob dois aspectos: um relacionado àquilo que deveria ser feito pelos indivíduos – desde o nível pessoal até o estatal − e outro relacionado à personificação da deusa Justiça. O primeiro caso pode ser visto quando o Corifeu disse à Antígona que não seria justo dar o mesmo tratamento ao homem de bem, que segundo eles seria Etéocles, e ao criminoso, Polinice. Vê-se aqui a subjetividade do que seria um homem de bem. Como o insepulto era contrário ao poder vigente, este foi considerado o criminoso. O segundo, quando Antígona explica que desobedeceu a ordem real “pois não foi decisão de Zeus; e a Justiça, a deusa que habita com as divindades subterrâneas, jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos” (Ibdem, p. 96). Entende-se aí que quando uma lei é extremamente injusta, ela poderá deixar de ser observada, perdendo sua eficácia social.

Já na opinião de Creonte, tudo que ele determinava seria justo e não havia nenhuma injustiça no fato de ele sustentar sua autoridade com proibições daquele tipo. Isso é uma mostra de que a ordem foi dada em benefício próprio e não de Tebas. Por medo de que sua autoridade fosse colocada à prova, Creonte, que já havia experimentado o poder em outra ocasião, temeu que as honras prestadas a Polinice pudessem ser relacionadas a um movimento de contestação ao seu poder e estimulassem novas revoltas contra ele.

Segundo o Coro, o homem “Com inteligência e habilidade ele pode se inclinar, ora para o bem, ora para o mal. Quando no governo, frequentemente se torna indigno, abjura as leis da natureza e as leis divinas a que jurou obedecer, e pratica o mal, audaciosamente!” (Ibdem, p. 93). Assim agia Creonte. Apesar de demonstrar consideração por algumas leis da natureza ou divinas, era capaz de passar por cima das que considerasse prejudiciais ao seu governo, agindo de forma incoerente e hipócrita.

1.4 Religiosidade e mitologia

A sociedade tebana era submetida a várias fontes de direito. Além do direito positivo, havia os costumes, a religião e a mitologia. Vivia-se em um ambiente controlado pela autoridade, pela religiosidade e pelo medo de punições, de homens ou deuses, conforme o mito, visto que “Um dos elementos centrais do pensamento mítico e de sua forma de explicar a realidade é o apelo ao sobrenatural, ao mistério, ao sagrado e à magia” (MARCONDES, s.d., p. 20).

Não se duvida do sentimento que Antígona nutria por seu irmão. Ela disse que não contrariaria a proibição real por causa de um filho ou marido, mas sim pelo irmão, visto que, por não ter mais pai ou mãe, nunca mais poderia ter outro. Ainda assim, durante todo o tempo existiu o medo de punição por algo errado que supostamente tivesse sido feito, antes ou depois do rito fúnebre de Polinice.

Deuses imortais, qual de vossas leis infringi? Mas... poderá me valer implorar aos deuses? Que auxílio posso deles esperar, se foi um ato de piedade que atraiu sobre mim o castigo reservado aos ímpios? Se tais coisas recebem a aprovação dos deuses, reconheço que sofro por minha culpa; mas, se me são impostas por meus inimigos mortais, a eles não desejo suplício mais cruel do que este que vou padecer! (SÓFOCLES, 2003, p. 101).


Acreditava-se que a casa dinástica dos Labdácias tinha sido castigada pelos deuses por causa do incesto cometido por Édipo e Jocasta e pelo parricídio praticado por Édipo. O Corifeu levantou a possibilidade de Antígona estar passando por tudo aquilo para expiar o pecado de seu pai. Sob esse aspecto, Creonte teria sido apenas um instrumento dos deuses para punir a neta de Laio.

Durante os preparativos para o emparedamento de Antígona, não se esqueceu de provê-lo com algum alimento, em cumprimento ao que dizia a tradição, para se evitar um sacrilégio e o castigo dos deuses para toda a cidade. Para aquela sociedade, nenhum homem, nem o rei, poderia profanar os deuses. Apesar disso, Creonte, em alguns momentos, deu uma interpretação pessoal à ideia de profanação.

Em dado momento, o Corifeu levantou a possibilidade de o sepultamento do cadáver ter ocorrido por uma “resolução dos deuses”. Creonte questionou ser possível que os estes honrassem uma pessoa que voltou à terra de seus antepassados para incendiar templos, acabar com tributos aos deuses e subverter sua pátria e as leis. Com isso, o rei demonstrou que acreditava na possibilidade de intervenção dos deuses nas questões terrenas, porém discordava do merecimento daquele defunto por motivos políticos e pessoais.

Por fim, quando o rei foi convencido de que não deveria ter dado aquela punição à Antígona, disse: “é melhor acatar as leis eternas que regem o mundo!” (Ibdem, p. 116), um claro reconhecimento de que o mundo não era regido apenas pelas leis criadas por ele ou por outro governante.

1.5 Tirania

Creonte, o tirano de Tebas, confundia-se com a própria cidade, e.g., quando disse que “...aquele que for cidadão benéfico para Tebas terá de mim, enquanto eu viver e depois de minha morte, todas as honras possíveis!” (Ibdem, p. 89). Além disso, disse que Polinice voltou para combater a pátria que Etéocles defendia. Este seria amigo da cidade e aquele inimigo, pois havia escolhido o lado errado da guerra.

Na verdade, a proibição do sepultamento de Polinice foi uma tentativa de mostrar o que, mesmo morto, poderia receber alguém que questionasse a autoridade de Creonte. Na opinião de Hêmon, impedir o sepultamento de Polinice seria vilipendiar os preceitos divinos e essa não seria a melhor forma de se sustentar a autoridade. Mais ainda, segundo Antígona, o povo aprovaria os atos dela se não tivesse a língua tolhida pelo medo e afirma que dizer e fazer o que se quer é privilégio da tirania.

Assim, tal qual Maquiavel em O Príncipe, diz-se que o governante não precisa ser bom ou virtuoso, mas aparentar. Segundo Tirésias, “Os tiranos adoram os proveitos, por mais vergonhosos que sejam” (Ibdem, p. 114). Em contrapartida, conforme Villey (2005), o que diferencia o povo bárbaro do grego é que este cultuava conscientemente o nómos – não entendido apenas como lei escrita, mas como costume, ordem social e direito – e a justiça. E Platão, em A República, considera a tirania como uma forma de governo imperfeita e degenerada (VILLEY, 2005, p. 23).

1.6 Desigualdades sociais em relação a mulheres, escravos e jovens

O tirano Creonte representou muitas vezes o pensamento da época em relação ao papel da mulher, dos jovens e dos escravos. Quando seu filho tentou persuadi-lo a não condenar Antígona, Creonte questionou-lhe se seria prudente, na idade dele, aceitar conselhos de um jovem. O juízo de valor não se baseou no que estava sendo dito, mas na idade de quem estava dizendo aquilo.

Quando questionado por Ismênia se seria capaz de mandar matar a noiva de seu filho, Creonte respondeu que “outros campos há que ele (Hêmon) possa cultivar” (SÓFOCLES, 2003, p. 101). A noiva foi metaforicamente comparada a um campo de cultivo que poderia ser facilmente substituído. Ou seja, não seria difícil conseguir outra noiva em seu lugar.

Durante uma conversa com Antígona, Creonte disse que enquanto ele vivesse nenhuma mulher o dominaria. Por desvalorizar a opinião feminina, ele chamou seu filho de “criatura vil, que se rebaixa para servir a uma mulher”, mesmo tendo este dito que lhe pertencia, e faria de tudo para não contrariá-lo, visto que este disse que na opinião de todas as mulheres Antígona não mereceria a morte por uma ação piedosa. Platão, em A República e As Leis, diz que homens e mulheres, quanto ao essencial, têm a mesma natureza (Apud Villey, 2005, 30). Veja-se o depoimento sentido de Ismênia, irmã de Antígona, sobre a maneira como a mulher era vista em Tebas:

[...] pensa no fim mais ainda mais terrível que nos espera se contrariarmos o decreto e afrontarmos o poder de nosso rei! Convém também lembrar que somos mulheres e não temos como lutar contra homens; além disso, não temos poder algum e estamos submetidas aos poderosos. Por isso somos obrigadas a obedecer a suas ordens, por mais que nos contrariem. Por mim, não tendo como resistir aos poderosos, peço perdão a nossos mortos: acatarei a ordem do rei. Seria insanidade tentar aquilo que vai muito além de nossas forças! (SÓFOCLES, 2003, p. 84)

2. A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA VIGENTE E O CONTEXTO DE ANTÍGONA

Após análise das questões jurídicas ocorridas em Antígona segundo a legislação brasileira vigente, entende-se que a proibição de Creonte seria vista como impedimento ou perturbação de cerimônia funerária (Art. 209 do CP), cuja pena é de detenção, de um mês a um ano, ou multa, com aumento de um terço, visto que o ato envolveu violência. Mais ainda, o princípio de igualdade previsto no caput do Art. 5º da CF não foi observado, haja vista que a um dos irmãos foi concedido que recebesse homenagens e sepultura e ao outro não; Antígona e as outras mulheres de sua época eram tratadas de forma desigual em relação aos homens (Art. 5º, I, da CF); e a liberdade de prática religiosa foi violada (Art. 5º, VI, da CF e Art. 208 do CP).

Considerando que Antígona suicidou-se com o cordão que prendia sua roupa, quem a prendeu deveria ter retirado dela qualquer coisa que pudesse auxiliá-la a cometer o suicídio. Por isso, segundo o Art. 122 do CP, Creonte poderia ser punido por induzimento ao suicídio, com duplicação da pena por ter sido cometido o crime por motivo egoístico.

Caso um dos comorientes, Etéocles ou Polinice, tivesse sobrevivido após matar o outro, apesar de terem cometido homicídio, entende-se que, por ter ocorrido durante uma guerra declarada, segundo o Art. 5º, inciso XLVII, alínea a, da CF, não haveria crime. Caso se entendesse que houve crime, segundo o Art. 121, § 1º, do CP, se o agente tiver sido impelido por relevante valor social ou moral, o juiz poderá reduzir a pena de um sexto a um terço.

3. CONCLUSÃO

Reconhece-se a dificuldade de analisar com a legislação atual fatos que retratam a sociedade de uma pólis grega. Assim, este trabalho, espera-se não ter sido anacrônico, tentou utilizar alguns instrumentos jurídicos atuais em um caso concreto com mais de dois milênios.

Antígona era fruto da sociedade de sua época e das experiências familiares e pessoais pelas quais havia passado. Motivada pelo amor ao irmão e aos deuses, sentiu-se no dever de sepultar seu irmão Polinice e prestar-lhe honras fúnebres. Não apenas pelo laço fraternal, mas por sua responsabilidade religiosa, que também era observada por seus contemporâneos.

A personagem não queria dar sepultura a um traidor da pátria, ao assassino de Etéocles ou ao opositor de Creonte, mas a alguém que havia saído do mesmo ventre que ela e que, por ser um descendente de Laio, já havia passado por diversas provações e castigos. Como se acreditava, muitos destes provinham dos deuses, portanto, não seria prudente passar por cima de uma ordem divina e correr o risco de castigos maiores e eternos. Entendia Antígona que ninguém teria direito de obrigá-la a cometer uma impiedade e, decidida a fazer o que qualquer cidadão faria se não tivesse medo do decreto real, previu que um dia seu “crime” seria louvado, pois se permitia violar um decreto injusto que quisesse ser superior ao dos deuses. Em uma sociedade em que pouco se dava importância ao indivíduo, por vezes as pessoas eram induzidas a contrariar até os preceitos religiosos antigos. Portanto, a atitude dela foi uma espécie de sacrifício em prol da liberdade.

Apesar de ter sido motivada por um rito funerário religioso, contrariando o direito positivo de seu tempo para aquele caso específico, Antígona tem sido vista como a heroína do direito natural. O que era apenas um rito religioso, com o tempo, passou a ser uma norma social, um direito individual dela. Por isso, ela é admirada pela defesa de seus ideais, de sua consciência religiosa e pela coragem de ir contra o poder de Creonte, o rei de Tebas que representa a tirania de muitos governantes da atualidade. Vejam-se os versos de Tomás Antônio Gonzaga, o mais destacado dos poetas árcades, a respeito do que seria um herói:

O ser herói, Marília, não consiste em queimar os impérios: move a guerra, espalha o sangue humano, e despovoa a terra também o mau tirano. Consiste o ser herói em viver justo: E tanto pode ser herói o pobre, Como o maior Augusto (GONZAGA, Parte I, Lira XXVII)

Assim, a liberdade, tão almejada pelos povos de todos os tempos, muitas vezes é alcançada com o derramamento do sangue de inocentes. Frágeis por serem menores que o opressor, mas fortes por lutarem por seus direitos até as últimas consequências.

Conclui-se que Antígona deve ser inocentada porque em todo o tempo foi justa e coerente com seus princípios firmados na religião, que era o mais sagrado sentimento da sociedade de tebana. A quem fez tudo o que deveria com base no conceito de justiça de seu tempo, por não se ter rendido à tirania e por ser símbolo da luta dos oprimidos, concede-se a absolvição.

BIBLIOGRAFIA

GONZAGA, Tomás Antônio. Marília de Dirceu. Disponível em: http://virtualbooks.terra.com.br/freebook/port/marilia_de_dirceu.htm. Acesso em: 12 mar. 2012.

MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia. 7a. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. s.d.

SÓFOCLES. Antígona. São Paulo: Martin Claret, 2003.

VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2005.