quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Ainda não é a gota d'água

“O pai e a filha vão colher a tempestade
A ira dos centauros e de pomba-gira
levará seus corpos a crepitar na pira
e suas almas a vagar na eternidade
Os dois vão pagar o resgate dos meus ais
Para tanto invoco o testemunho de Deus,
a justiça de Têmis e a benção dos céus,
os cavalos de São Jorge e seus marechais,
Hécate, feiticeira das encruzilhadas,
padroeira da magia, deusa-demônia,
falange de ogum, sintagmas da Macedônia,
suas duzentas e cinquenta e seis espadas,
mago negro das trevas, flecha incendiária,
Lambrego, Canheta, Tinhoso, Nunca-visto,
fazei desta fiel serva de Jesus Cristo
de todas as criaturas a mais sanguinária
Você, Salamandra, vai chegar sua vez
Oxumaré de acordo com mãe Afrodite
vão preparar um filtro que lhe dá cistite,
corrimento, sífilis, cancro e frigidez
Eu quero ver sua vida passada a limpo,
Creonte. Conto co’a Virgem e o Padre Eterno,
todos os santos, anjos do céu e do inferno,
eu conto com todos os orixás do Olimpo!”*

Pois bem, se fosse a gota d’água, merecerias ouvir tais palavras e outras mais contra ti. Ainda não é, mas não perco viagem e te deixo meu recado.

As palavras que saem de tua boa trazem ao exterior a podridão que existe dentro de ti. Tentas transformar o mundo em tua volta à semelhança de teu mundo interior, mas não consegues. Teu interior sempre será corrupto e amoral. Tuas últimas vitórias têm sido os seguidores que consegues angariar e arrastar contigo. Nenhum deles consegue superar-te, és invencível nos males que fazes e sabes disso.

Não te desejo o que Joana desejou a Creonte e sua filha Alma, desejo-te o pior dos teus medos: que fiques aprisionado em companhia de ti mesmo. Nada podes livrar-te de ti, por isso foges. Na tentativa de achar acalanto para teu suplício, cerca-te de tolos que te veem um mestre. De fato, és mestre da sordidez e do escracho, alguém que se sente incapaz de aperfeiçoar-se e fazer o bem, por isso, convertes o bem em mal, a verdade em mentira e distorces a mente de quem tem ouvidos para ti. Pena que não consigas convencer-te também.

No fim de teus dias, quando pensares que descansarás dos teus males, aí é que teu sofrimento apresentará nova fase. Tua dívida com o próximo será paga aqui mesmo. Do outro lado, conversarás com Aquele de quem tanto te desfizeste, mas será tarde. Serás enviado para perto daqueles que por toda a vida reverenciaste e verás que não tiveram poder para salvar-se, muito menos para salvar-te. Naquele momento, talvez, a trave te cairá dos olhos e verás o tempo que perdeste. Não sei se serás capaz.

Não penses que esqueci de tuas filhas e filhos. Todos eles, cada um a seu turno, perceberão o tempo que perderam contigo e sumirão, como muitos somem. O ciclo se repetirá e, mais uma vez, perceberás que estás só contigo e com os demônios que te acompanham. Rodas o mundo, moves céus e terra tentando esquecer-te, mas nada resolve. Os que caem em si e se vão estão certos, és tu que não enxergas que o mundo também existe de dia e que o ano não tem dois meses.

Não te reservo o ódio porque este já tens e conheces bem, mora no teu coração. Espero que acordes deste longo sono e que procures uma saída, se tiveres tempo.

* BUARQUE, Chico; PONTES, Paulo. Gota D’Água. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 1982, p. 89 e 90.

Nenhum comentário: