terça-feira, 31 de julho de 2012

Antígona: Uma breve análise das questões morais e jurídicas na tragédia tebana

INTRODUÇÃO

A peça Antígona é a última da Trilogia Tebana escrita por Sófocles, poeta grego que viveu no século V a.C., e dá sequência a Édipo Rei e Édipo em Colono. O palco dos acontecimentos é Tebas, cidade que fora governada por Laio, pai de Édipo. Quando este, desconhecendo o laço paternal, matou aquele, foi seu tio Creonte quem governou a cidade até que Édipo se tornasse o rei.

Depois de Édipo ter deixado Tebas por causa de seu erro, Etéocles e Polinice, filhos de Édipo e Jocasta, em comum acordo, alternam o governo da cidade em lugar de seu pai. Porém, depois de um período, Eteócles recusou-se a ceder seu lugar ao irmão, que declarou guerra para conquistar a coroa. Descontente, Polinice juntou-se com Adrasto, rei de Argos, e outros guerreiros e lançou a expedição dos Sete contra Tebas, iniciando uma guerra para retomar a coroa.

Durante uma batalha, os irmãos se mataram um ao outro, e Creonte, outra vez no poder, rendeu homenagens a Etéocles antes de sepultá-lo e instituiu um édito que proibia o sepultamento e as honrarias a Polinice previstos pela tradição funerária ligada à religião. Antígona, irmã dos dois, inconformada com o desrespeito ao costume sagrado, decidiu desobedecer às ordens reais e dar um sepultamento digno a Polinice.

É a partir daí que este trabalho pretende abordar as questões morais e jurídicas que envolvem essa tragédia tebana. Encenada e estudada ao longo dos séculos por discutir os limites entre o direito natural e o direito positivo, Antígona agora servirá de base para uma análise que não pretende ser exaustiva ou linear, mas que deseja discutir brevemente temas como crimes contra a vida; tipos de punição; religiosidade; tirania; conceito de justiça; desigualdade entre homens, mulheres e escravos na sociedade tebana.

1. ANÁLISE DAS QUESTÕES MORAIS E JURÍDICAS EM ANTÍGONA

1.1 Atentados contra a vida

Motivada pelo costume sagrado, Antígona assumiu o dever de sepultar Polinice, que matou Etéocles e foi morto por ele. Em relação aos atentados contra a vida, destacam-se da peça o fratricídio, o suicídio e o regicídio. O primeiro está relacionado ao homicídio entre irmãos, o segundo é o ato intencional de tirar a própria vida e o terceiro é o homicídio de um governante.

Apesar dos laços fraternais, Polinice e Etéocles entendiam que o domínio da cidade estaria acima das ligações familiares, por isso não se pouparam um ao outro. A personagem que dá nome à peça, ao ver-se emparedada e condenada à morte, antecipa-a, enforcando-se com uma corda de sua cintura. Hêmon, noivo de Antígona e filho de Creonte, indignado ao ver sua amada morta, preferiu suicidar-se. Na sequência, Eurídice, mãe de Hêmon, desconsolada pela morte do filho, também se mata.

Observa-se que antes de suicidar-se, Hêmon tentou ferir seu pai, mas este afastou-se e não se feriu. Caso aquele conseguisse seu intento e ferisse seu pai de morte, seria um caso de regicídio e não de parricídio exclusivamente. A motivação do crime seria a insatisfação com a punição que Creonte deu a Antígona, que não foi motivada por ordem do futuro sogro, mas do tirano de Tebas.

Obviamente, os atentados descritos acima não podem ser analisados apenas sob a ótica do século XXI. Naquele tempo e naquela sociedade, a morte era preferível à desonra e ao banimento. Veja-se o que disse Antígona a Creonte quando viu que não teria escapatória: “Que vou morrer, bem o sei; é inevitável; e morreria mesmo sem o teu decreto. E para dizer a verdade, se morrer antes do meu tempo, será para mim uma vantagem! Quem vive como eu, envolta em tanto luto e desgraça, que perde com a morte?” (SÓFOCLES, 2003 p. 96).

Essa atitude extremada foi uma maneira de levar às últimas consequências uma insatisfação. Ainda hoje há muitos gregos cometendo o suicídio por não concordarem com a atual política grega e por terem sido prejudicados por ela.

1.2 Punições

Dentre os muitos tipos de punição, como a prisão por um crime ou a escravização de um prisioneiro de guerra, Antígona apresenta duas práticas que ainda podem ser encontradas em alguns países fundamentalistas islâmicos, e.g.: o apedrejamento e o emparedamento. Esta foi a punição dada a Antígona, apesar de aquela ter sido a punição prometida aos desobedientes.

O emparedamento foi uma espécie de sepultamento em vida àquela que já estava morta sentimentalmente pela perda do irmão. Como disse Tirésias, o profeta cego de Tebas, “Para que matar pela segunda vez quem já não vive?” (Ibdem, p. 113). As pedras da caverna foram a sepultura que o destino reservou para a filha de Édipo que, movida por seu amor fraternal, em um ato heroico, deu sepultura ao irmão. A honra deste foi a desonra e a punição daquela.

Caso se considere apenas a desobediência, a personagem que dá nome à tragédia recebeu o que merecia por ter ido de encontro à determinação real, porém existem outros detalhes que merecem observação: o objetivo da desobediência não foi questionar a legitimidade de Creonte como governante, mas aquela proibição específica. Além disso, não foi por sua própria vaidade, mas para observar uma tradição funerária de reconhecida importância para a sociedade tebana, inclusive o próprio Creonte, que rendeu homenagens a Etéocles.

1.3 Conceito de justiça

Em Antígona, aborda-se a justiça sob dois aspectos: um relacionado àquilo que deveria ser feito pelos indivíduos – desde o nível pessoal até o estatal − e outro relacionado à personificação da deusa Justiça. O primeiro caso pode ser visto quando o Corifeu disse à Antígona que não seria justo dar o mesmo tratamento ao homem de bem, que segundo eles seria Etéocles, e ao criminoso, Polinice. Vê-se aqui a subjetividade do que seria um homem de bem. Como o insepulto era contrário ao poder vigente, este foi considerado o criminoso. O segundo, quando Antígona explica que desobedeceu a ordem real “pois não foi decisão de Zeus; e a Justiça, a deusa que habita com as divindades subterrâneas, jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos” (Ibdem, p. 96). Entende-se aí que quando uma lei é extremamente injusta, ela poderá deixar de ser observada, perdendo sua eficácia social.

Já na opinião de Creonte, tudo que ele determinava seria justo e não havia nenhuma injustiça no fato de ele sustentar sua autoridade com proibições daquele tipo. Isso é uma mostra de que a ordem foi dada em benefício próprio e não de Tebas. Por medo de que sua autoridade fosse colocada à prova, Creonte, que já havia experimentado o poder em outra ocasião, temeu que as honras prestadas a Polinice pudessem ser relacionadas a um movimento de contestação ao seu poder e estimulassem novas revoltas contra ele.

Segundo o Coro, o homem “Com inteligência e habilidade ele pode se inclinar, ora para o bem, ora para o mal. Quando no governo, frequentemente se torna indigno, abjura as leis da natureza e as leis divinas a que jurou obedecer, e pratica o mal, audaciosamente!” (Ibdem, p. 93). Assim agia Creonte. Apesar de demonstrar consideração por algumas leis da natureza ou divinas, era capaz de passar por cima das que considerasse prejudiciais ao seu governo, agindo de forma incoerente e hipócrita.

1.4 Religiosidade e mitologia

A sociedade tebana era submetida a várias fontes de direito. Além do direito positivo, havia os costumes, a religião e a mitologia. Vivia-se em um ambiente controlado pela autoridade, pela religiosidade e pelo medo de punições, de homens ou deuses, conforme o mito, visto que “Um dos elementos centrais do pensamento mítico e de sua forma de explicar a realidade é o apelo ao sobrenatural, ao mistério, ao sagrado e à magia” (MARCONDES, s.d., p. 20).

Não se duvida do sentimento que Antígona nutria por seu irmão. Ela disse que não contrariaria a proibição real por causa de um filho ou marido, mas sim pelo irmão, visto que, por não ter mais pai ou mãe, nunca mais poderia ter outro. Ainda assim, durante todo o tempo existiu o medo de punição por algo errado que supostamente tivesse sido feito, antes ou depois do rito fúnebre de Polinice.

Deuses imortais, qual de vossas leis infringi? Mas... poderá me valer implorar aos deuses? Que auxílio posso deles esperar, se foi um ato de piedade que atraiu sobre mim o castigo reservado aos ímpios? Se tais coisas recebem a aprovação dos deuses, reconheço que sofro por minha culpa; mas, se me são impostas por meus inimigos mortais, a eles não desejo suplício mais cruel do que este que vou padecer! (SÓFOCLES, 2003, p. 101).


Acreditava-se que a casa dinástica dos Labdácias tinha sido castigada pelos deuses por causa do incesto cometido por Édipo e Jocasta e pelo parricídio praticado por Édipo. O Corifeu levantou a possibilidade de Antígona estar passando por tudo aquilo para expiar o pecado de seu pai. Sob esse aspecto, Creonte teria sido apenas um instrumento dos deuses para punir a neta de Laio.

Durante os preparativos para o emparedamento de Antígona, não se esqueceu de provê-lo com algum alimento, em cumprimento ao que dizia a tradição, para se evitar um sacrilégio e o castigo dos deuses para toda a cidade. Para aquela sociedade, nenhum homem, nem o rei, poderia profanar os deuses. Apesar disso, Creonte, em alguns momentos, deu uma interpretação pessoal à ideia de profanação.

Em dado momento, o Corifeu levantou a possibilidade de o sepultamento do cadáver ter ocorrido por uma “resolução dos deuses”. Creonte questionou ser possível que os estes honrassem uma pessoa que voltou à terra de seus antepassados para incendiar templos, acabar com tributos aos deuses e subverter sua pátria e as leis. Com isso, o rei demonstrou que acreditava na possibilidade de intervenção dos deuses nas questões terrenas, porém discordava do merecimento daquele defunto por motivos políticos e pessoais.

Por fim, quando o rei foi convencido de que não deveria ter dado aquela punição à Antígona, disse: “é melhor acatar as leis eternas que regem o mundo!” (Ibdem, p. 116), um claro reconhecimento de que o mundo não era regido apenas pelas leis criadas por ele ou por outro governante.

1.5 Tirania

Creonte, o tirano de Tebas, confundia-se com a própria cidade, e.g., quando disse que “...aquele que for cidadão benéfico para Tebas terá de mim, enquanto eu viver e depois de minha morte, todas as honras possíveis!” (Ibdem, p. 89). Além disso, disse que Polinice voltou para combater a pátria que Etéocles defendia. Este seria amigo da cidade e aquele inimigo, pois havia escolhido o lado errado da guerra.

Na verdade, a proibição do sepultamento de Polinice foi uma tentativa de mostrar o que, mesmo morto, poderia receber alguém que questionasse a autoridade de Creonte. Na opinião de Hêmon, impedir o sepultamento de Polinice seria vilipendiar os preceitos divinos e essa não seria a melhor forma de se sustentar a autoridade. Mais ainda, segundo Antígona, o povo aprovaria os atos dela se não tivesse a língua tolhida pelo medo e afirma que dizer e fazer o que se quer é privilégio da tirania.

Assim, tal qual Maquiavel em O Príncipe, diz-se que o governante não precisa ser bom ou virtuoso, mas aparentar. Segundo Tirésias, “Os tiranos adoram os proveitos, por mais vergonhosos que sejam” (Ibdem, p. 114). Em contrapartida, conforme Villey (2005), o que diferencia o povo bárbaro do grego é que este cultuava conscientemente o nómos – não entendido apenas como lei escrita, mas como costume, ordem social e direito – e a justiça. E Platão, em A República, considera a tirania como uma forma de governo imperfeita e degenerada (VILLEY, 2005, p. 23).

1.6 Desigualdades sociais em relação a mulheres, escravos e jovens

O tirano Creonte representou muitas vezes o pensamento da época em relação ao papel da mulher, dos jovens e dos escravos. Quando seu filho tentou persuadi-lo a não condenar Antígona, Creonte questionou-lhe se seria prudente, na idade dele, aceitar conselhos de um jovem. O juízo de valor não se baseou no que estava sendo dito, mas na idade de quem estava dizendo aquilo.

Quando questionado por Ismênia se seria capaz de mandar matar a noiva de seu filho, Creonte respondeu que “outros campos há que ele (Hêmon) possa cultivar” (SÓFOCLES, 2003, p. 101). A noiva foi metaforicamente comparada a um campo de cultivo que poderia ser facilmente substituído. Ou seja, não seria difícil conseguir outra noiva em seu lugar.

Durante uma conversa com Antígona, Creonte disse que enquanto ele vivesse nenhuma mulher o dominaria. Por desvalorizar a opinião feminina, ele chamou seu filho de “criatura vil, que se rebaixa para servir a uma mulher”, mesmo tendo este dito que lhe pertencia, e faria de tudo para não contrariá-lo, visto que este disse que na opinião de todas as mulheres Antígona não mereceria a morte por uma ação piedosa. Platão, em A República e As Leis, diz que homens e mulheres, quanto ao essencial, têm a mesma natureza (Apud Villey, 2005, 30). Veja-se o depoimento sentido de Ismênia, irmã de Antígona, sobre a maneira como a mulher era vista em Tebas:

[...] pensa no fim mais ainda mais terrível que nos espera se contrariarmos o decreto e afrontarmos o poder de nosso rei! Convém também lembrar que somos mulheres e não temos como lutar contra homens; além disso, não temos poder algum e estamos submetidas aos poderosos. Por isso somos obrigadas a obedecer a suas ordens, por mais que nos contrariem. Por mim, não tendo como resistir aos poderosos, peço perdão a nossos mortos: acatarei a ordem do rei. Seria insanidade tentar aquilo que vai muito além de nossas forças! (SÓFOCLES, 2003, p. 84)

2. A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA VIGENTE E O CONTEXTO DE ANTÍGONA

Após análise das questões jurídicas ocorridas em Antígona segundo a legislação brasileira vigente, entende-se que a proibição de Creonte seria vista como impedimento ou perturbação de cerimônia funerária (Art. 209 do CP), cuja pena é de detenção, de um mês a um ano, ou multa, com aumento de um terço, visto que o ato envolveu violência. Mais ainda, o princípio de igualdade previsto no caput do Art. 5º da CF não foi observado, haja vista que a um dos irmãos foi concedido que recebesse homenagens e sepultura e ao outro não; Antígona e as outras mulheres de sua época eram tratadas de forma desigual em relação aos homens (Art. 5º, I, da CF); e a liberdade de prática religiosa foi violada (Art. 5º, VI, da CF e Art. 208 do CP).

Considerando que Antígona suicidou-se com o cordão que prendia sua roupa, quem a prendeu deveria ter retirado dela qualquer coisa que pudesse auxiliá-la a cometer o suicídio. Por isso, segundo o Art. 122 do CP, Creonte poderia ser punido por induzimento ao suicídio, com duplicação da pena por ter sido cometido o crime por motivo egoístico.

Caso um dos comorientes, Etéocles ou Polinice, tivesse sobrevivido após matar o outro, apesar de terem cometido homicídio, entende-se que, por ter ocorrido durante uma guerra declarada, segundo o Art. 5º, inciso XLVII, alínea a, da CF, não haveria crime. Caso se entendesse que houve crime, segundo o Art. 121, § 1º, do CP, se o agente tiver sido impelido por relevante valor social ou moral, o juiz poderá reduzir a pena de um sexto a um terço.

3. CONCLUSÃO

Reconhece-se a dificuldade de analisar com a legislação atual fatos que retratam a sociedade de uma pólis grega. Assim, este trabalho, espera-se não ter sido anacrônico, tentou utilizar alguns instrumentos jurídicos atuais em um caso concreto com mais de dois milênios.

Antígona era fruto da sociedade de sua época e das experiências familiares e pessoais pelas quais havia passado. Motivada pelo amor ao irmão e aos deuses, sentiu-se no dever de sepultar seu irmão Polinice e prestar-lhe honras fúnebres. Não apenas pelo laço fraternal, mas por sua responsabilidade religiosa, que também era observada por seus contemporâneos.

A personagem não queria dar sepultura a um traidor da pátria, ao assassino de Etéocles ou ao opositor de Creonte, mas a alguém que havia saído do mesmo ventre que ela e que, por ser um descendente de Laio, já havia passado por diversas provações e castigos. Como se acreditava, muitos destes provinham dos deuses, portanto, não seria prudente passar por cima de uma ordem divina e correr o risco de castigos maiores e eternos. Entendia Antígona que ninguém teria direito de obrigá-la a cometer uma impiedade e, decidida a fazer o que qualquer cidadão faria se não tivesse medo do decreto real, previu que um dia seu “crime” seria louvado, pois se permitia violar um decreto injusto que quisesse ser superior ao dos deuses. Em uma sociedade em que pouco se dava importância ao indivíduo, por vezes as pessoas eram induzidas a contrariar até os preceitos religiosos antigos. Portanto, a atitude dela foi uma espécie de sacrifício em prol da liberdade.

Apesar de ter sido motivada por um rito funerário religioso, contrariando o direito positivo de seu tempo para aquele caso específico, Antígona tem sido vista como a heroína do direito natural. O que era apenas um rito religioso, com o tempo, passou a ser uma norma social, um direito individual dela. Por isso, ela é admirada pela defesa de seus ideais, de sua consciência religiosa e pela coragem de ir contra o poder de Creonte, o rei de Tebas que representa a tirania de muitos governantes da atualidade. Vejam-se os versos de Tomás Antônio Gonzaga, o mais destacado dos poetas árcades, a respeito do que seria um herói:

O ser herói, Marília, não consiste em queimar os impérios: move a guerra, espalha o sangue humano, e despovoa a terra também o mau tirano. Consiste o ser herói em viver justo: E tanto pode ser herói o pobre, Como o maior Augusto (GONZAGA, Parte I, Lira XXVII)

Assim, a liberdade, tão almejada pelos povos de todos os tempos, muitas vezes é alcançada com o derramamento do sangue de inocentes. Frágeis por serem menores que o opressor, mas fortes por lutarem por seus direitos até as últimas consequências.

Conclui-se que Antígona deve ser inocentada porque em todo o tempo foi justa e coerente com seus princípios firmados na religião, que era o mais sagrado sentimento da sociedade de tebana. A quem fez tudo o que deveria com base no conceito de justiça de seu tempo, por não se ter rendido à tirania e por ser símbolo da luta dos oprimidos, concede-se a absolvição.

BIBLIOGRAFIA

GONZAGA, Tomás Antônio. Marília de Dirceu. Disponível em: http://virtualbooks.terra.com.br/freebook/port/marilia_de_dirceu.htm. Acesso em: 12 mar. 2012.

MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia. 7a. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. s.d.

SÓFOCLES. Antígona. São Paulo: Martin Claret, 2003.

VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2005.


Direito Romano: análise de quatro tópicos sob influência aristotélica

Introdução

O Direito Romano é fruto da civilização que, além de contribuir para o surgimento do idioma no qual este trabalho foi escrito, teve importante influência na gênese da legislação vigente em diversos países do mundo, dentre os quais o Brasil. Ao longo dos séculos, o espírito prático dos romanos levou-os a adotar uma filosofia simples e sólida, com origem grega, mas adaptada à realidade romana pela experiência e observação de seus jurisconsultos.

Nesse sentido, nota-se no Direito Romano a índole de autonomia familiar, de proteção do indivíduo, de poder e prestígio do paterfamilias, por exemplo. É sabido também que algumas normas jurídicas romanas foram perdendo a eficácia e sendo reprovadas pelas civilizações subsequentes, como a escravidão e a evidente distinção entre pessoas.

Apesar disso, o Direito Romano é símbolo da evolução do pensamento jurídico ocidental. Além de seu conteúdo, a arte romana preocupou-se com a forma e a linguagem, buscando clareza, simplicidade e exatidão vocabular. Assim, o objetivo deste trabalho é analisar brevemente quatro aspectos do Direito Romano com influência da doutrina aristotélica, quais sejam: equidade, justiça comutativa x justiça distributiva, preocupação em aplicar apenas o direito, e direito natural.

1. DIREITO ROMANO

Desde a origem de Roma (séc. VIII a.C.) até a morte de Justiniano (565 d.C.) houve normas jurídicas que conduziram os romanos. Ao conjunto dessas normas chama-se Direito Romano, cujas fontes são numerosas e de natureza diversa. Segundo Giordani (1968), dentre elas, destacam-se, as obras dos jurisconsultos a seguir: as Instituições de Gaio, modelo para as Instituições de Justiniano; o Livro das Regras, de Ulpiano; o Livro das Sentenças, de Paulo; Fragmento Dositeano; Fragmenta Vaticana, de Paulo, Ulpiano, Papiniano e constituições imperiais, como o Digesto de Justiniano, cuja obra com o tempo ficou conhecida como Corpus Iuris Civilis; e os Fragmentos de Sinai.

A fronteira entre o Direito público e o privado era bem nítida entre os romanos. Essa divisão era feita com base na finalidade. Assim, o publicum ius era o que organizava a República Romana e o privatum ius era o destinado a regulamentar as relações entre particulares. Por ter este último várias divisões, citam-se ilustrativamente o Direito Civil, voltado para o cidadão romano e conhecido também como Ius Quiritum, em alusão aos ancestrais que se autodenominavam Quirites; o Direito das Gentes, com domínio mais amplo que o Direito Civil por ser voltado a todos os povos do mundo romano, cidadãos ou não (D.1.1.9); e o Direito Natural, por vezes visto como o direito ensinado a homens e animais pela natureza ou como o direito que é comum a todos os homens baseado na razão, diferenciando-o de instinto (D.1.1.1.4).

1.1 Suas fontes

O Direito Romano foi produzido por várias pessoas, de variadas formas, e teve diferentes manifestações. Giffard (Apud GIORDANI 1968, p. 257) divide a história das fontes do Direito Romano em quatro períodos: origens, antigo direito, período clássico e período do Baixo Império.

No primeiro período, coincidente com a Realeza (753 a.C. – 510 a.C.), os costumes dos antepassados eram a principal fonte de direito. Para evitar a incerteza e arbitrariedade de uma legislação não escrita, diz-se que os comícios curiatos, formados por patrícios que escolhiam reis e demais funcionários do governo, julgavam as disputas e declaravam a guerra ou a paz, votaram as chamadas leis régias.

No período do antigo direito (até 150 a.C.), destacou-se a Lei das XII Tábuas, conhecida como fonte de todo o direito público e privado, conjunto de todo o direito romano, escrita para codificar o direito costumeiro e evitar arbitrariedades de patrícios contra plebeus. Como exemplo da proteção oferecida a estes, lembre-se do exposto na Tábua I, III, que trata do chamamento a juízo: “Se a doença ou idade o impossibilitarem, fornece-lhe condução, mas nunca uma carruagem, a não ser que queiras ser benevolente”. Isso evitaria que um patrício se recusasse a ser levado a juízo por um plebeu que não possuísse recursos para alugar-lhe uma carruagem.

Sabe-se que houve a criação de leis posteriores à Lei das XII Tábuas, como a Lei Canuleia, que permitiu o casamento entre patrícios e plebeus e outras relacionadas a temas agrários e de contratos, conforme as modificações socioeconômicas pelas quais a sociedade romana passou.

No período clássico (150-284 a.C.), iniciou-se a Lex Aebutia, que instituiu o processo formulário, dando origem a novas fórmulas de que as partes necessitavam para conseguir efeitos jurídicos, e enriqueceu o direito. Assim, nesse período, as leis, o costume, os editos dos magistrados, as respostas dos juriscunsultos, os senatus-cunsultos e as constituições imperiais eram as fontes de direito. Entre o início do reinado de Constantino (312-337 d.C.) e a morte de Justiniano (565) tem-se o período do Baixo Império, quando o imperador legislava e interpretava a lei. Portanto, nesse período, as fontes do direito eram as constituições imperiais e o direito clássico que teve origem nos juriscunsultos, depois de passar pelo crivo do imperador.

2. VISÃO JURÍDICA DE ARISTÓTELES

A tendência universalista é uma característica marcante na filosofia grega, envolvendo moral, política, física e metafísica, dentre outros. Com a intenção de dar conta de tudo o que existisse, o filósofo grego preocupava-se em entender o homem, a natureza e Deus sem fazer diferença entre as ciências particularmente (MENDES, 1903).

Aristóteles (384-322 a.C.) deu importante contribuição à organização do pensamento grego, com posterior impacto no pensamento ocidental. Para ele, a função primordial das ciências seria descobrir a essência dos seres e defini-la em termos reais. A realidade ofereceria a diversidade dos seres percebidos pelos sentidos como elementos do real. Assim, tudo o que fosse captado pelos sentidos faria parte da realidade, divergindo, portanto de seu mestre Platão, que entendia ser mera distorção da realidade encontrada no mundo das ideias.

A observação dos fatos, dos fenômenos da natureza, do homem e da sociedade, por meio de um raciocínio indutivo, levou Aristóteles a conhecer as leis o os princípios que os regiam. Segundo Cotrim (2010, p. 191), o empirismo aristotélico era um processo de conhecimento que caminharia do individual e específico para o universal e genérico. Em suma, Aristóteles fundamentou seu método na experiência e na observação, entendendo o direito como produto das demandas da sociedade, como uma necessidade orgânica.

Ao estudar as manifestações da justiça no seio da sociedade, Aristóteles dividiu-a em justiça geral e justiça particular. A primeira seria a soma de todas as virtudes para o benefício aos outros homens. Tratava-se, portanto, de uma virtude essencialmente social, que incluía tudo o que concorre para a prosperidade da vida em sociedade. A segunda seria uma parte da virtude geral. Por sua importância para a preservação da ordem social, sua observância é estabelecida por lei. Como afirma Mendes (1903), “A justiça particular foi dividida por Aristóteles em várias espécies: justiça comutativa e justiça distributiva; justiça positiva e justiça natural; justiça comum e justiça singular, justiça escrita e justiça não escrita, etc.”.

A justiça natural, por exemplo, é fundada na natureza, logo, não depende da opinião das pessoas comuns, nem dos legisladores, por seu caráter universal e imutável. Já a justiça legal está relacionada à ideia de que ser justo é respeitar a lei, porque tudo que é de acordo com a lei, é voltado para o bem comum estabelecido pelos diversos povos. Assim, o conceito de justiça, inicialmente, é obedecer às leis da pólis. Apesar disso, a justiça positiva, às vezes, precisa ser corrigida pela equidade.

Visto que as leis dos povos são genéricas, podem ocorrer casos específicos em que a aplicação da lei provoque um mal maior. Nesses casos, o direito positivo poderia ser retificado com base na equidade, que é a característica de quem tem a virtude e a prática de fazer o bem, em uma invocação ao direito natural. Para Aristóteles, a virtude consiste no meio-termo ou justa medida de equilíbrio entre o excesso e a falta de uma qualidade qualquer. Não basta que um indivíduo tenha uma virtude, é necessário que a pratique (COTRIM, 2010, p. 195).

A frase Suum cuique tribuere (dar a cada um o que é seu), atribuída a Ulpiano, dependendo dos indivíduos envolvidos em cada caso concreto, pode dizer respeito à justiça distributiva ou à comutativa. A primeira consiste no tratamento desigual das pessoas na medida de sua desigualdade, está relacionado à proporção geométrica. Os direitos e deveres dependem das características de cada um. A segunda iguala os indivíduos e está presente nas trocas em geral, em que não se deve considerar a qualidade das pessoas, mas o valor das coisas trocadas ou negociadas (CHAUI, 2010, p. 327). Ela considera a proporção aritmética.

Considerando a importância do pensamento de Aristóteles para o desenvolvimento do raciocínio jurídico, a seguir se fará uma sucinta análise de quatro elementos de sua doutrina presentes no Direito Romano.

2.1 Equidade

Equidade é o corretivo da justiça legal, ou seja, é uma correção da lei. Apesar de a lei ser prevista para todos os indivíduos, e de refletir aquilo que agradou o príncipe (MADEIRA, p. 53), há casos em que sua aplicação seria de alguma forma injusta. Assim, conforme o caso concreto, pode-se usar a equidade para, fugindo da justiça legal, dar a melhor solução.

A equidade aristotélica, porém, não deve ser usada a qualquer momento para corrigir leis sempre. Ela deve observar a lei positiva o máximo possível e não deve ser usada para piorar a situação do mais fraco, haja vista que em uma relação entre o Estado e um particular, um homem e uma mulher ou um senhor e um escravo, por exemplo, os últimos seriam sempre o polo mais fraco.

Segundo o Digesto de Justiniano (D.1.1.1pr.), “é preciso que aquele que há de se dedicar ao direito primeiramente saiba de onde descende o nome ‘direito’. [...] direito é a arte do bom e do justo”. Ou seja, o operador do direito não deveria sujeitar-se à lei cegamente. Desde que fosse para evitar uma injustiça maior, seria possível ignorar uma norma imposta.

Com a divisão do processo formulário em duas partes, intentio e condemnatio, nesta parte o pretor escrevia mensagens para que o juiz, que não era especializado, tratasse uma das partes de maneira específica, ligeiramente diferente da convencional. Exemplificando, caso alguém vendesse algo diferente do acordado, o pretor escreveria ao juiz que o vendedor deveria ser condenado apenas em caso de dolo, caso se comprovasse a má-fé.

Portanto, a equidade seguiria os seguintes parâmetros: tratar desigualmente os casos desiguais, na medida de sua desigualdade; levar em consideração todas as circunstâncias relevantes; e ter por base uma aplicação generosa, benevolente, da lei. Visto isso, nota-se que a equidade pressupõe o direito positivado, pois no contexto jurídico de povos sem escrita ela não seria aplicável.

2.2 Justiça comutativa x justiça distributiva

O preceito suum cuique tribuere reflete as ideias de Pitágoras, Sócrates, Platão e, principalmente, Aristóteles, sobre o justo e o injusto. Este preceito indica a função própria da justiça, que Ulpiano caracterizou como a vontade constante e perpétua de atribuir a cada um o seu direito. Semelhantemente, no Digesto (D.1.1.10pr.), vê-se que “Justiça é a vontade constante e perpétua de dar a cada um o seu direito”.

Então, entende-se que a justiça comutativa ordena as trocas, para que duas coisas sejam trocadas da forma mais justa possível, mas para que isso se dê, é preciso que as duas tenham o mesmo valor. Em relações comerciais, troca-se dinheiro por mercadorias; em relações trabalhistas, a remuneração por trabalho; em relações de direito civil, o dano pela indenização adequada; no direito penal, o crime pela punição. Ou seja, a regulação se dá entre iguais.

Por sua vez, na justiça distributiva, a autoridade pública responsabiliza-se pela distribuição de obrigações e direitos, para que cada um receba o que lhe for devido a partir de critérios variáveis segundo a multiplicidade das situações ou conforme os pontos de vista. Portanto, é uma regulação entre desiguais.

A expansão do Império Romano fez com que a administração criasse mecanismos jurídicos que protegessem e amparassem também os estrangeiros, o Ius Gentium. Este ficou conhecido como direito híbrido, pois era uma mistura do Direito Romano e o direito dos povos conquistados (D.1.1.9). Para que as relações entre romanos e estrangeiros não fossem desiguais, prevalecia o ius gentium. Nota-se aí a aplicação da justiça corretiva de Aristóteles.

No processo quiritário, por sua vez, não havia preocupação com a intenção do ato, mas com a ação em si. O Estado puniria o réu baseado no ato concreto, independentemente do dolo. Isso está relacionado à justiça distributiva.

2.3 Preocupação em aplicar apenas o direito

Aristóteles traçou uma fronteira entre direito e moral. Enquanto, para Platão, direito e moral eram indissociáveis, para Aristóteles, o direito estava contido na moral, ao lado da justiça geral. Esta, por sua vez, seria excelência moral. Porém, dentro da moral existiria um viés que caberia à justiça particular. Como consta no Digesto, “os preceitos do direito são estes: viver honestamente, não lesar outrem, dar a cada um o seu” (D.1.1.10pr.).

Em Roma, tinha-se como característica o direito de fronteiras bem determinadas, só era julgado o que era direito. Outra característica importante era a rigidez do formalismo, pois funcionava como um filtro. Apenas o que fosse direito chegaria ao pretor; para isso, usavam-se fórmulas específicas para cada conflito, evitando que se desvirtuasse o objetivo do processo.

2.4 Direito natural

Sabe-se que o direito não é um fenômeno cultural, mas social, por isso pode variar conforme o lugar e o tempo. Segundo Aristóteles, natureza tem dois sentidos: um geral (cosmos, harmonia) e outro particular, que seria a essência de cada ser. Assim, o ser humano deve esforçar-se para colocar em prática aquilo que lhe foi dado pela natureza como potência, ou possibilidade de ser (COTRIM, 2010, p. 20).

A ética de Aristóteles mostra que, apesar de a prática contínua de uma vida teórica seja imprescindível, para que se alcance a felicidade isso não é suficiente. A felicidade seria uma vida dedicada à contemplação teórica, associada ao exercício de outras virtudes humanas e apoiada pelo bem-estar material e social.

Segundo o Digesto, direito natural é aquilo que sempre é justo e bom. Além disso, aquilo que é útil a todos ou a muitos em uma cidade (D.1.1.11; D.1.1.1.4). Para o filósofo grego, direito natural e direito positivo seriam complementares. Desse modo, nota-se que o Direito Romano não considerava apenas a lei positiva, mas também os costumes dos antepassados, que tinham relação com o direito natural. Ainda no Digesto (D.1.3.2), diz-se que “toda lei é uma descoberta e um dom de Deus”, por isso as devem conduzir aqueles que a natureza quis que convivessem civilmente.

CONCLUSÃO

Dada a importância do Direito Romano para a formação da mentalidade jurídica ocidental, faz-se oportuno estudá-lo e reconhecer a influência da filosofia grega nele contida. Resultado do esforço intelectual de inúmeros indivíduos ao longo de vários séculos, para compreendê-lo, deve-se acompanhar sua evolução histórica (MARKY, 2007, p. 3).

Os elementos de influência aristotélica encontrados no Direito Romano e abordados aqui, em parte ainda podem ser encontrados no direito vigente de muitos países. Obviamente, do mesmo modo que os jurisconsultos romanos adaptaram a contribuição helênica às necessidades de seu tempo, os legisladores atuais atualizam o legado deixado pelos romanos e usam-no em parte para a resolução de conflitos que surgem ao longo do tempo.

Sem a pretensão de ter esgotado o tema, espera-se que este trabalho tenha sido uma reflexão inicial a respeito da influência do Direito Romano na criação de leis, sem desprezar a influência da visão jurídica de base aristotélica, e uma contribuição para a formação de estudantes de direito.

BIBLIOGRAFIA

CHAUI, Marilena. Iniciação à Filosofia. São Paulo: Ática, 2012.

COTRIM, Gilberto; FERNANDES, Mirna. Fundamentos de Filosofia. São Paulo: Saraiva, 2010.

GIORDANI, Mário Curtis. História de Roma. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1968.

__________. Iniciação ao Direito Romano. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1991.

MARKY, Thomas. Curso Elementar de Direito Romano. 8ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

MADEIRA, Hélcio Maciel Franca. Digesto de Justiniano. Liber Primus. 2. ed. Editora Revista dos Tribunais.

MENDES, José. Ensaios de Philosofia do Direito. São Paulo: Duprat & C., 1903. Disponível em: http://helciomadeira.sites.uol.com.br/PDF/AULAS/HD1/Princ_D_R.pdf. Acesso em: 20 mai. 2012.


O Caso dos Exploradores de Cavernas: uma breve análise dos aspectos jurídicos

INTRODUÇÃO

O professor norte-americano Lon Luvois Fuller (1902-1976), da Harvard Law School, escreveu The case of the speluncean explorers em 1949. Traduzido para vários idiomas e publicado no Brasil em 1976 sob o título O caso dos exploradores de cavernas, esse é um caso jurídico hipotético comumente utilizado nos cursos introdutórios das faculdades de direito. Seu tema central gira em torno do conflito existente entre a interpretação literal do ordenamento jurídico e sua adequação ao caso concreto(1).

No ano de 4300, quatro homens acusados do homicídio de Roger Whetmore, pertencentes a uma organização amadora de exploração de cavernas, impetraram recurso na Suprema Corte de Newgarth para recorrer da condenação à forca proferida pelo Tribunal do Condado de Stowfield.

Vinte e um dias depois de terem sido soterrados, os exploradores foram informados pelos engenheiros de que o salvamento demoraria, pelo menos, mais dez dias. Whetmore, então, levantou a possibilidade de buscar alimento na carne de um deles, visto que os alimentos levados haviam acabado. Considerando que nenhum juiz, autoridade do governo ou sacerdote quis participar da decisão sobre quem seria morto, o próprio Whetmore teve a ideia de fazer a escolha por meio de dois dados que trazia consigo.

Antes que os dados fossem lançados, Whetmore desistiu e tentou convencer seus companheiros a esperar mais uma semana para então lançá-los e fazer a difícil escolha, porém não lhe deram ouvidos e lançaram-nos assim mesmo. Ao chegar sua vez, como Whetmore negou-se a fazê-lo, um dos exploradores lançou o dado em lugar dele, que, para seu azar, foi o escolhido.

Dentre os cinco votos dos juízes da Suprema Corte de Newgarth, encontram-se basicamente duas linhas de raciocínio: há os que veem a ética como algo mutável e entendem estar o estado de necessidade acima da lei, e os que defendem a aplicação da lei independentemente do contexto em que o fato social ocorreu. Visto isso, na sequência pretende-se analisar o voto de cada um dos cinco juízes, procurando entender sua linha de raciocínio e sua inclinação positivista ou jusnaturalista.

1. OS VOTOS DOS JUÍZES

1.1 Juiz Truepenny

O voto do juiz Truepenny, Presidente da Suprema Corte de Newgarth, serve não só para expressar os motivos que levaram o magistrado a tomar sua decisão, mas também para introduzir a narrativa, contextualizando-a.

No julgamento de primeira instância, dada a complexidade do caso, em um veredicto especial, o porta-voz dos jurados propôs que o juiz dissesse se os réus eram culpados ou inocentes. Depois do consentimento do membro do Ministério Público e do advogado dos réus, a proposta do porta-voz, que era advogado, foi aceita.

Naquela ocasião os réus foram condenados à forca, e o juiz não teve possibilidade de aplicar-lhes uma pena alternativa (FULLER, 1976, p. 8). Por entenderem que a aplicação da pena dissociada da análise do caso concreto seria de certa forma uma injustiça, os membros do júri e, separadamente, o juiz enviaram uma petição ao Executivo, na esperança de que a pena fosse comutada em prisão de seis meses. Apesar disso, até o momento do voto de Trueppeny não havia resposta sobre o pedido.

O presidente da Suprema Corte considerou adequado o recurso à clemência executiva porque, apesar de a lei dizer que qualquer um que tenha tirado a vida de outrem deve ser punido com a morte, ao analisar o caso concreto, a pena precisaria ser reconsiderada e ter seu rigor reduzido. Assim, Truppeny, certo de que seriam atendidos, propôs aos demais juízes da Suprema Corte que seguissem o exemplo da primeira instância e, em vez de decidirem sobre o caso, apenas se solidarizassem ao pedido de clemência já feito ao chefe do Executivo (Ibdem, p. 9).

Segundo Truppeny, o Executivo só poderia indeferir o pedido de clemência após a instauração de nova investigação, o que levaria pelo menos três meses e seria incompatível com as funções tradicionalmente atribuídas ao Executivo. Em sua opinião, essa seria a forma de fazer justiça sem contrariar a lei vigente ou incentivar sua inobservância (Ibdem, p. 10).

Nota-se, por meio de seu voto, que o juiz Trueppeny não quis punir uma injustiça cometendo uma injustiça ainda maior. Sua decisão faz com que se lembre da ética do meio-termo de Aristóteles (COTRIM, 2010, p. 194). A seu ver, condená-lo à forca seria uma punição muito severa, porém absolvê-los seria ignorar o ato praticado por eles. Ao aplicar uma pena alternativa, ficaria evidente que a vida é um valor básico e direito fundamental defendido pelo ordenamento jurídico, e que, no caso concreto, entendeu-se que o homicídio não teve o objetivo de simplesmente tirar a vida de outrem, mas o de valer-se dele para preservação da vida dos demais, em semelhança ao que acontece no reino animal.

Em relação à clemência executiva defendida por Truppeny, essa seria uma forma de os juízes tirarem de si a responsabilidade de uma decisão tão polêmica e transferi-la para o Executivo, que muitas vezes considera o apelo popular para tomar uma decisão. Caso isso tivesse acontecido no Brasil, segundo o Art. 107, inciso II do CP, a punibilidade dos exploradores poderia ser extinta por graça plena, se fossem totalmente perdoados; ou parcial, se a pena fosse comutada, observando-se que isso é atribuição exclusiva do Presidente da República.

Sobre a interferência do Presidente da República no caso em questão, observa-se que a estrutura orgânica do Estado está dividida por competências e prevê que “as funções de legislar, administrar e julgar devem ser atribuídas a órgãos distintos e independentes, mas que, ao mesmo tempo, se controlem reciprocamente” (BARROSO, 2011, p. 27). Essa é uma forma de restringir o poder e proteger os indivíduos de abusos. Apesar disso, sabe-se que com o passar do tempo a separação de poderes proposta por Montesquieu com “funções intrinsecamente diversas e inconfundíveis” (DALLARI, 2012, p. 217) tem sido modificada e as funções, em certas ocasiões, se aproximam com o objetivo de aumentar a eficiência e a dinâmica do Estado (Ibdem, p. 219). Segundo Dallari (Ibdem, p. 220), a rígida separação de poderes está superada, daí a necessidade de se reorganizar o Estado, para que se concilie eficiência necessária com os princípios democráticos.

1.2 Juiz Foster

A solução proposta por Truppeny foi vista pelo juiz Foster como “sórdida e simplista”. Segundo este, não se deve deixar o destino daqueles quatro homens a cargo de um capricho do chefe do Executivo (FULLER, 1976, p. 10, 11). Para defender a tese de que os exploradores devem ser inocentados, Foster argumenta, por exemplo, que o direito positivo seria inaplicável, visto que o caso seria regido pela lei da natureza. Para esse juiz a lei só seria válida em sociedade, mas na caverna onde houve o desmoronamento a ética seria outra, portanto a sanção deveria desaparecer.

Foster faz menção à equidade, que é o corretivo da justiça legal, ou seja, uma correção da lei. Apesar de a lei ser prevista para todos os indivíduos, e de refletir aquilo que o legislador considerou um valor jurídico a ser observado, há casos em que sua aplicação seria de alguma forma injusta. Assim, conforme o caso concreto, pode-se usar a equidade para, fugindo da letra fria da lei, chegar à melhor solução. A equidade, portanto, seguiria os seguintes parâmetros: tratar desigualmente os casos desiguais, na medida de sua desigualdade; levar em consideração todas as circunstâncias relevantes; e ter por base uma aplicação generosa, benevolente, da lei.

Contextualizando ao ordenamento brasileiro, o CPC observa no Art. 127 que “o juiz só decidirá com equidade nos casos previstos em lei”, em articulação com o Art. 335 do CPC, que concede ao juiz a possibilidade de aplicar regras de experiência comum, por exemplo, quando faltar norma jurídica particular. Junte-se a isso o Art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LInDB (Lei nº 4.657/42).

Além disso, Foster afirma que Whetmore foi vítima de um contrato criado por ele próprio e ratificado pelos demais exploradores. Assim, a dificílima situação em que se encontravam mostrou-lhes que as leis positivadas para as relações sociais tradicionais não lhes seria útil. Segundo Rousseau (2004, p. 26), “Se o homem não tem poder natural sobre seus iguais, se a força nãos produz direito, restam-nos as convenções, que são o esteio de toda a autoridade legítima entre os homens”. Então, deu-se a necessidade de elaborar uma nova constituição, que foi legitimada por seus destinatários e tornou-se soberana no caso concreto.

1.3 Juiz Tatting

Apesar de o voto desse juiz ter sido um dos mais extensos, a análise neste trabalho será a mais breve. Haja vista que, depois de ter feito duras críticas aos votos dos juízes anteriores, Tatting diz-se “incapaz de afastar as dúvidas” que ainda tinha, por isso abriria precedente naquele Tribunal e se recusaria a participar daquela decisão (FULLER, 1976, p. 39, 40).

Entende-se que a dúvida é para o cidadão comum, o magistrado deveria, além de mostrar as inconsistências dos votos anteriores, caso houvesse, usar o poder que lhe foi conferido e tomar uma posição, para fazer sentido o fato de existir uma instância superior a que se possa recorrer. Seu silêncio ratificou o status quo dos réus, ou seja, a condenação.

1.4 Juiz Keen

No voto do juiz Keen percebe-se a desaprovação da instrução que Truppeny deu ao chefe do Executivo em relação à clemência. Para aquele, isso seria uma confusão entre as funções governamentais. Apesar disso, mostra-se favorável ao perdão total daqueles réus, visto que, em sua opinião de cidadão e não de juiz, já haviam sofrido o suficiente para serem punidos mais uma vez (Ibdem, p. 41).

Diz ainda que não cabe ao juiz aplicar seus próprios valores, mas o direito do país(2). Segundo ele, diferentemente de seus colegas, deixa suas predileções de lado e interpreta as leis vigentes para aplicá-las ao caso, em uma alusão ao princípio da impessoalidade. Em sua visão positivista, afirma que o Judiciário tem o dever de fazer cumprir as leis, em uma crítica ao voto de Foster, que parece tentar sobrepor-se ao que foi editado pelo Legislativo, buscando lacunas na lei para atender ao seu desejo. Keen chega a acusar Foster de não se agradar das leis (Ibdem, p. 47).

Tentar descobrir o que o legislador pensaria a respeito de alguém que matasse outrem para alimentação parece-lhe um processo de preenchimento de lacunas de natureza ilusória. Por fim, Keen reconhece que decisões rigorosas nunca são populares e conclui que a sentença condenatória deve ser confirmada, condenando os réus. Portanto, sua decisão fui exclusivamente técnica, contrariando seu desejo pessoal.

1.5 Juiz Handy

Em seu voto, Handy demonstrou que levou em consideração o apelo popular do caso, que havia sido debatido amplamente pela sociedade, em jornais e revistas, por exemplo (Ibdem, loc. cit.). Apesar de reconhecer que a opinião pública é emocional e caprichosa, entende que absolvê-los seria uma maneira de preservar a vida daqueles quatro homens em cuja operação de salvamento dez operários morreram, e de atender à expectativa da maioria da população, com a qual preocupa-se bastante.

Não surpreende o fato de, mesmo não ocupando um cargo eletivo, um juiz de última instância atender aos anseios da sociedade por meio de seu voto. Vejam-se os exemplos das votações acerca da validação das cotas raciais em universidades(3) ou da união estável de homosexuais(4). Reconhece-se a importância das duas decisões e concorda-se, inclusive, com ambas, mas é sabido que em casos como esses, dificilmente um dos ministros do Supremo Tribunal Federal gostaria de ter seu nome vinculado à rejeição.

Segundo Handy, não se poderia contar com o perdão do chefe do Executivo por causa de seus princípios rígidos e pelo fato de o clamor público geralmente provocar-lhe um efeito diferente do esperado (Ibdem, p. 66). Assim, usa das atribuições que lhe foram conferidas e vota em favor da absolvição dos réus.

2. A CONDENAÇÃO

O juiz Truepenny votou em favor da condenação dos réus e encaminhou um pedido de clemência ao Executivo, na tentativa de que o chefe deste poder perdoasse os exploradores de cavernas; Foster absolveu-os, por entender que nenhuma condenação seria superior a tudo a que já haviam sido submetidos; Tatting absteve-se de votar por ainda ter dúvidas; Keen condenou-os, por entender que a lei deve ser aplicada independentemente dos valores pessoais do juiz; Handy absolveu-os, depois de considerar os fatos e o apelo popular.

Como houve empate na decisão da Suprema Corte de Newgarth, prevaleceu a sentença condenatória do Tribunal de primeira instância e os quatro exploradores de cavernas foram enforcados. Dessa forma, os votos dos juízes demonstram a postura filosófica de cada magistrado, que baseados em um mesmo ordenamento jurídico chegaram a conclusões opostas.

A propósito, é a urgência da inclusão de princípios e argumentos morais no direito que diferencia a visão positivista da naturalista, em embate no caso dos exploradores. Enquanto o direito prestigia certos valores morais, a moral serve de fiel da balança nos casos em que o direito positivo for omisso, configurando, assim, uma relação de retroalimentação.

Como se vê, a aplicação de uma lei é a explicitação de que determinado valor moral deve ser observado e a indicação de uma conduta que deve ser corrigida. Se o direito abandonasse essas atitudes, a condenação de alguém seria apenas uma mostra do poder estatal. Ressalva-se que, apesar de a ideia de justiça estar intimamente ligada ao direito, há leis moralmente reprováveis que mesmo assim possuem validade jurídica (ALEXY, 2005, p. 20, 21). Em relação ao limite que a moral imporia ao direito, aqui também se visualiza um quadro de possível anarquia caso uma norma jurídica perdesse sua validade pelo fato de, até certo grau, não ser condizente com um preceito da moralidade, que não pode ser confundida com moralismo. Então, afirmar que uma injustiça extrema não é direito pode suscitar instabilidade ao ordenamento jurídico, incentivando que indivíduos aleguem injustiça segundo seus próprios critérios.

Segundo Alexy (Ibdem, pp. 25, 26), a relação entre direito e moral tenta responder, basicamente, à seguinte pergunta: Os destinatários do sistema jurídico teriam um dever moral de aceitar o que está prescrito pelo simples fato de ser lei, independentemente de seu conteúdo? Se fosse assim, a moral seria um fundamento do direito. Sobre isso o positivismo possui simultaneamente duas vertentes: a positivista moral entenderia que, por mais imoral que seja, o que está prescrito não perde sua eficácia social; já a positivista neutral diria que os deveres jurídicos, os únicos estabelecidos pelo direito, não deveriam chocar-se com os deveres morais, mas podem fazê-lo.

A posição tomada pelo juiz Tatting, a de abster-se de votar, não participando do julgamento, mostra que ele possivelmente era favorável à condenação dos quatro homens, porém não estava disposto a ter seu nome associado a uma decisão tão difícil e polêmica. Entende-se que quando ele se silenciou, na verdade, deu razão ao mais forte, visto que teria o poder de livrá-los da morte e não o fez.

CONCLUSÃO

“En este mundo traidor nada es verdad ni mentira todo es según el color del cristal con que se mira” Ramón de Campoamor

Positivistas e jusnaturalistas são harmônicos ao entenderem que o direito possui uma estrutura aberta, por isso, há lacunas do direito positivo que só se resolvem com apoio de uma argumentação de base moral. Lembre-se que, conforme o Art. 4º da LInDB, quando houver omissão da lei, o juiz poderá decidir o caso com o apoio dos costumes, dentre outras fontes supletivas de direito. Se não fosse assim, na omissão da lei o juiz aplicaria seus próprios valores e não os da comunidade necessariamente.

Visto isso, entende-se que o costume “vigora e tem cabimento, até onde não chega a palavra do legislador, seja para regular as relações sociais em um mesmo rumo que o costume antes vigente, seja para estabelecer uma conduta diversa da consuetudinária” (PEREIRA, 2012, p. 57). Assim, os princípios morais exercem um papel corretivo em relação ao direito positivo.

O caso dos exploradores de cavernas demonstra que com o mesmo ordenamento jurídico é possível condenar ou absolver um indivíduo, dependendo da linha de raciocínio que se use. Veem-se nessa obra votos de absolvição e de condenação que são coerentes do ponto de vista lógico e que deixam transparecer a base filosófica em que cada magistrado se apoia.

Além disso, existe um valor moral que direciona os indivíduos a obedecerem ao direito, desde que este não seja extremamente injusto, viole outros direitos ou esteja desvinculado da moral. Entretanto, não é simples a tarefa de determinar o que seria extremamente injusto, dada a multiplicidade de dilemas morais que envolvem a sociedade, por isso foi difícil a decisão dos juízes de O caso dos exploradores de cavernas. Assim, acredita-se que o embate ideológico entre jusnaturalistas e positivistas ainda tem espaço para muita discussão, dado o difícil tracejar do limite entre direito e moral.

Finalizando, não se espera ter feito uma análise exaustiva do caso, mas entende-se que foi um importante exercício de reflexão a respeito da dificuldade de assumir uma posição ética que objetive a justiça, com base no direito positivado, mas não se afaste dos valores observados universalmente com base na razão.

1. Cf. GUT, Taldje. Dica de Leitura: O caso dos exploradores de cavernas. Disponível em: . Acesso em: 01 jun. 2012. 2. Veja-se sobre o que versa o Art. 5º da LInDB. GAZETA DO POVO. Em decisão unânime, STF valida cotas raciais em universidades. 3. Disponível em: . Acesso em: 03 jun. 2012. 4. FOLHA. STF reconhece por unanimidade a união gay. Disponível em: . Acesso em: 03 jun. 2012

BIBLIOGRAFIA

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BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 27.

BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei Nº 2.848/40.

BRASIL. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Decreto-Lei Nº 4.657/42.

COTRIM, Gilberto; FERNANDES, Mirna. Fundamentos de Filosofia. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 194.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 31. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. pp. 217, 219, 220.

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PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Vol. I. 25. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 57.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social: ou princípios do direito político. São Paulo: Martin Claret, 2004, p. 26.