terça-feira, 7 de setembro de 2010

O Dicionário, de Machado de Assis

Machado de Assis, conhecido por sua ironia e pela sutileza de suas críticas à sociedade de seu tempo, ao escrever o conto O Dicionário, deixou-nos uma obra que, apesar de publicada no final do século XIX, mostra-se bem atual. À semelhança de O Alienista, outra obra representativa do Realismo, o protagonista é um homem que acredita poder mudar o rumo da sociedade em que vive baseado na subjetividade de seus próprios valores.

O narrador onisciente de O Dicionário, em terceira pessoa, inicia sua história com a locução “Era uma vez”, comum em narrativas curtas de tradições orais. Nas primeiras linhas apresenta características psicológicas e físicas de Bernardino, o personagem principal. Nomes próprios que caracterizam a personalidade de indivíduos são comuns nas obras do “Bruxo do Cosme Velho” e nesse caso não foi diferente.

Bernardo, adjetivo relativo à ordem de Cister criada por Bernardo de Clairvaux, por extensão de sentido e em uso pejorativo, significa indivíduo gordo e estúpido. Ao longo da narração podem-se encontrar vários exemplos da estupidez de Bernardino, o pequeno estúpido que, com a progressiva perda de senso, autodenomina-se Bernardão.

De origem simples, Bernardino era um fabricante de tonéis e barris, com ares de politizado, que almejava ver o poder nas mãos do povo. Após tomar o poder à força, percebeu não ser possível que a multidão se sentasse em um único trono e, por confundir-se com o próprio povo, sentou-se no assento real e proclamou-se soberano. A partir daí, uma série de atos e decretos que só faziam sentido para o demagogo ex-tanoerio começaram a mudar a rotina dos habitantes desse lugar que em nenhum momento é mencionado pelo narrador.

O primeiro de seus atos foi voltar-se contra seus confrades, dando fim à profissão dos tanoeiros, aos quais concedeu o título de Magníficos. Rapidamente aprendeu que um governante possui meios de comprar o silêncio dos governados. O segundo ato foi trocar seu nome, em que há sufixo indicativo de diminutivo por Bernardão. Embora usasse palavrório rebuscado, sua falsa erudição não o deixou perceber que adequara seu nome ao volume de sandices que estava por fazer.

Curiosamente, após assumir o comando de seu povo, o personagem encomenda aos sábios uma rebuscada genealogia que o associa à descendência de um suposto famoso general romano do século IV, Bernardus Tanoarius. Queria que a lembrança de sua origem humilde fosse apagada da memória dos súditos, por isso a associação a um antepassado com nome latino, que costuma dar nobreza àquele que o ostenta.

O terceiro ato foi obrigar que seus subservientes se tornassem calvos, para assumir a aparência dele, sob pretexto de que a unidade moral do Estado exigia a uniformidade exterior de seus concidadãos. Durante a descrição dessa passagem, Machado utiliza uma metáfora que representa a juventude: verdes anos. O quarto ato, igualmente sábio — e aí se nota mais uma ironia machadiana — estabeleceu que todos os sapatos do pé esquerdo deveriam apresentar um buraco na altura do dedo mínimo, dessa forma se assemelhariam aos do insano reinante que padecia de calosidade.

Depois de dois anos no trono, Bernardão precisou usar óculos para corrigir um problema de vista. Nessa ocasião, seus dois ministros, Alfa e Ômega, assemelharam-no a Homero ou a Aníbal, e então foi despertada a vocação poética do monarca.

Seus conselheiros eram bajuladores, por isso relacionaram a deficiência ocular dele a uma suposta semelhança com Aníbal, general cartaginês conhecido por ser um dos maiores táticos militares da história, ou Homero, poeta épico grego, autor da Ilíada e da Odisseia. Aqueles aduladores eram peritos em iludir, a ponto de criarem um novo pronome de tratamento, Vossa Sublimidade, e atribuí-lo a seu chefe.

Os nomes dos assessores representam as vogais inicial e final do alfabeto grego, dessa forma sentiam-se competentes para qualquer questão linguística. Isso sugere que as brilhantes ideias começavam com Alfa e terminavam com Ômega antes de o regente colocá-las em prática. Eis aí uma amostra de hierarquização do poder na sociedade. Mesmo entre servos, há os de maior e os de menor prestígio.

Tendo o controle da cidade em mãos, na tentativa de perpetuar sua dinastia, Bernardão quis casar-se. Não obstante muitas moças terem se candidatado, Estrelada, a desejada dos homens da cidade, foi a que mais chamou a atenção do casadouro real. Mesmo sendo de origem popular, ele se sentiu atraído por uma jovem de características nobres e gosto apurado, fiel à antiga dinastia deposta e com nome afinado com seu estilo de vida.

O rei inexperiente, por entender que tinha certa desvantagem em relação à amada, ofereceu-lhe muitas riquezas e, para sua sorte, contava com o apoio dos familiares dela, que viam nele oportunidade de riqueza e poder.

Como tinha em mente um poeta para noivo, Estrelada sugeriu que seus pretendentes competissem na composição de um madrigal — poesia concisa que exprime pensamento fino, terno ou galante e que, em geral, se destina a ser musicada, nascida na Itália, no século XIV. O preferido da mulher, por sua experiência poética, venceu todas as etapas do concurso, anulado várias vezes por decreto, segundo os critérios do déspota.

Após esses acontecimentos o título do conto começa a fazer sentido, visto que, para dificultar a produção do madrigal por seus concorrentes, Bernardão mandou que Alfa e Ômega produzissem o Dicionário de Babel, no qual havia completa confusão das letras e distanciamento da língua falada. Apenas seus criadores seriam capazes de compreendê-lo, mas foi decretado que ele seria a base da língua oficial e dos madrigais. Ainda assim, após nova competição, o verdadeiro amado de Estrelada venceu novamente.

Em meio à melancolia, Bernardão leu alguns versos do poema satírico “Sobre a Imitação dos Antigos”, do poeta português Pedro António Correia Garção. Nesse ponto o leitor tem um exemplo de intertextualidade, tanto de O Dicionário com Sobre a Imitação dos Antigos, como desta obra com A Poética, de Aristóteles. Com maestria Machado ignora tempo e espaço e aproxima sua obra de Garção e de Aristóteles, estabelecendo diálogo entre as artes literária e plástica.

Existe alguma semelhança entre o protagonista de O Dicionário e Simão Bacamarte, personagem principal de O Alienista. O primeiro, um homem simples que conquista o poder, mostra não ser digno dele por causa da inconstância e da incoerência de seus atos. O segundo muda constantemente sua opinião sobre o que seria loucura e o tratamento mais adequado para cada caso. Na medida em que analisava suas teorias, alterava o tratamento empregado aos pacientes. Chegou ao ponto de, após conquistar a confiança de seu povo, colocar a maior parte da cidade no hospício que criou, considerando que seus critérios para a loucura tornaram-se muito amplos.

Aos apreciadores dos textos machadianos, acostumados com sua ironia e críticas, vale a pena ler e relembrar seu estilo peculiar. Para quem ainda não leu algo escrito pelo fundador da Academia Brasileira de Letras, essa pode ser a oportunidade de começar a se familiarizar com sua obra.

Em O Dicionário, o leitor encontrará uma crítica de Machado à insensatez de governantes, à hierarquização da sociedade, à subordinação descabida, às disputas amorosas entre outras. Este é um conto de poucos parágrafos, rico em detalhes e ainda atual, apesar de seus mais de cem anos. Pode ser lido em poucos minutos por pessoas que se interessem por temas relacionados ao comportamento humano em sociedade.

É uma leitura simples — com exceção de algumas palavras que caíram em desuso, para as quais se recomenda um dicionário — que, com certa valorização da cultura clássica, pode levar o leitor a momentos de reflexão sobre temas que sempre farão parte da sociedade, sobre os quais dificilmente seremos unânimes.