quarta-feira, 1 de maio de 2013

Abuso de Direito

INTRODUÇÃO

Segundo Aristóteles, em A política, o homem é um animal gregário por excelência, ou seja, não vive sozinho, mas em constante relação com seus pares. Para aquele filósofo grego, as pessoas dependem umas das outras para sua própria subsistência e, desde seu surgimento, sempre viveram em grupos. Assim, criaram-se grupos familiares que evoluíram até alcançar o estágio de sociedade organizada (RICCITELLI, p. 1, 2007).

Dando um salto no tempo, é patente que a vida em sociedade exige dos indivíduos regras, positivadas ou não, que regulem condições mínimas para a boa convivência. Em um mesmo lugar, em um mesmo momento, os indivíduos querem que o exercício de seus direitos seja garantido. Porém, pelo fato de nem sempre terem noção dos limites, não medem a intensidade desse exercício e acabam interferindo na esfera jurídica alheia.

Tendo em vista essa situação, o Código Civil de 2002, no art. 187, afirma que “comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Isso é uma limitação ética que sujeita à reparação civil o indivíduo que, no exercício de um direito, causa mal a outrem. Ou seja, uma tentativa de evitar o desvio de finalidade de um direito.

Percebe-se, com isso, que a lei não se preocupa apenas com o caráter objetivo do exercício de um direito, mas também com o subjetivo. O direito de propriedade, a liberdade de expressão e tantos outros não podem ser utilizados com a intenção de prejudicar alguém, sem proveito para quem os exerce.

Por entender a importância da definição de limites para o convívio em sociedade, este trabalho tem o objetivo de definir abuso de direito segundo a doutrina, analisando o entendimento de dois dos principais doutrinadores nacionais. Além disso, analisar-se-á o Caso Ellwanger, em que o exercício da liberdade de expressão leva seu titular à mais alta corte do País.

1 O ABUSO DE DIREITO E A DOUTRINA

Até a promulgação do Código Civil de 2002, não se podia afirmar que existia uma solução satisfatória para a problemática do abuso de direito. Havia autores, como Marcel Planiol, que enxergavam uma contradição interna na utilização dos termos, pelo fato de a ideia de abuso ser contrária ao direito e o conceito de direito ser avesso à noção de qualquer abuso. Por outro lado, havia o entendimento de que o exercício do direito jamais poderia ser visto como algo ilícito, mesmo que causasse ruína, desgraça ou humilhação a outrem (PEREIRA, 2012, p. 565, 566).

Conforme o ensinamento aristotélico, o ser humano é um animal social. Assim, a união entre os homens é natural, pois o homem é naturalmente carente e necessita de coisas e de outras pessoas para se sentir pleno. Dessa forma, viu-se a necessidade de encontrar um meio-termo, um limite para que os indivíduos conciliassem o exercício de seu direito e o respeito à esfera jurídica alheia, garantindo a boa convivência entre os homens. A doutrina do abuso de direito se firma nesse entendimento.

Segundo Caio Mário (idem, p. 566, 567), o abuso de direito fundamenta-se na regra da relatividade dos direitos; na dosagem do conteúdo do exercício, quando admite que se o titular de um direito exceder o limite regular de seu exercício agirá sem direito; e na configuração do animus nocendi, estabelecendo que o exercício do direito que tem o objetivo de prejudicar alguém deve ser reprimido.

Atualmente, considera-se inadmissível que alguém cause prejuízo evitável a outrem sob alegação de estar exercendo um direito seu, com intuito de fazer o mal e sem proveito próprio. É interessante observar a intenção do sujeito do direito, pelo fato de haver situações em que se causa certo dano a outrem que são perfeitamente lícitas, como a cobrança de uma dívida. Neste caso, o dano ao devedor seria inevitável, pois é intrínseco ao exercício regular e normal do direito.

Carlos Roberto Gonçalves (2009, p. 467, 468) ensina que os romanos entendiam que quem agisse dentro de seu direito não prejudicaria a ninguém. Infelizmente, essa ótica individualista que justificava os excessos e abusos do direito foi aplicada durante anos. Na atualidade, porém, as sociedades civilizadas reconhecem a existência de um dever de não prejudicar a outrem. Contudo, é preciso frisar que nos casos de abuso de direito não ocorre uma violação objetiva dos limites previstos em lei. O que se dá é um desvio da finalidade social a que o direito se destina.

Há inúmeros casos em que se encontra abuso no exercício de um direito. Por exemplo, alguém que, entendendo exercer seu direito de propriedade, transforma seu terreno situado em área residencial em um depósito de lixo, com a intenção de desvalorizar os demais imóveis para uma futura possibilidade de compra. O direito do proprietário não pode colocar em risco a saúde da vizinhança, do solo, do subsolo e do ar (art. 1.228, §§ 1º, 2º, do CC).

A mesma constituição que garante o direito de propriedade estabelece que a propriedade deve atender à sua função social (art. 5º, XXII, XXIII, da CF; art. 5º, da LInDB). Assim, em uma ponderação entre o direito de propriedade e a dignidade da vizinhança, prevalecerá esta última. Nesse caso, o interesse existencial dos demais moradores se sobreporá ao econômico do proprietário do terreno.

Entendendo que o abuso de direito tem relevância na maioria dos campos do direito, por ser uma forma de repressão à aplicação antissocial de direitos subjetivos (GONÇALVES, 2009, p. 468), na sequência, pretende-se analisar o Caso Ellwanger, em que alguém, alegando exercer sua liberdade de expressão, divulga material de conteúdo racista. Dessa forma, perceber-se-á como as opiniões dos ministros do STF se dividiram ao julgar os limites da liberdade de expressão, garantida pelos arts. 5º, IV, IX; 220, caput, da Constituição Federal.

2. CASO ELLWANGER: UM CONFRONTO ENTRE A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E O RACISMO*

2.1 Apresentação do caso

Em 1986 o Movimento Popular Anti Racista (MOPAR), formado pelo movimento judeu, movimento negro e movimento de justiça e direitos humanos, entrou com uma denúncia contra o editor gaúcho Siegfried Ellwanger Castan, alegando o conteúdo racista de suas obras, dizendo que elas denegriam a imagem do povo judeu e lhe aplicavam um valor pejorativo. Em 1990 uma nova denúncia foi realizada, instaurando-se inquérito policial que foi remetido ao Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul (MP-RS) e recebido em 1991.

O MP-RS determinou a busca e apreensão dos exemplares que continham o conteúdo racista, entretanto Ellwanger não acatou tal decisão, e em 1996 foi flagrado vendendo os exemplares na Feira do Livro de Porto Alegre, o que gerou uma nova denúncia, que foi recebida em 1998. A defesa sustentou que tais obras do escritor não tinham conteúdo racista, e sim, um cunho ideológico contra o movimento sionista internacional. Porém, a defesa não obteve sucesso na sustentação e o escritor foi condenado a dois anos de reclusão.

Em dezembro de 2002, a defesa de Ellwanger ajuizou pedido de habeas corpus no Supremo Tribunal Federal (STF), como recurso à condenação imposta pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em 1991, pela publicação de livros como “Holocausto judeu ou alemão? Nos bastidores da mentira do século” e “Os Conquistadores do Mundo: os verdadeiros criminosos de guerra e Hitler, culpado ou inocente?”. O pedido de habeas corpus foi negado e a condenação foi reiterada pelo STF em 2003.

2.2 O entendimento do STF

Para chegar à decisão, os ministros do STF, basicamente, discutiram o conceito de racismo, liberdade de expressão e manifestação do pensamento individual. Naquela ocasião, o relator Moreira Alves e os ministros Ayres Brito e Marco Aurélio foram favoráveis ao habeas corpus, por entenderem que o povo judeu não pode ser considerado uma raça.

Além disso, segundo eles haveria uma diferença entre a divulgação de ideias de teor antissemita e a incitação de práticas antissemitas. Dessa forma, o editor não poderia ser condenado por ter feito uma revisão histórica do conflito entre alemães e judeus na Segunda Grande Guerra. No entanto, a discussão desenvolvida pela maioria dos ministros não privilegiou a interpretação gramatical ou literal do texto constitucional a respeito do racismo (arts. 4º, VII; 5º, XLII, CF).

Para sustentar seu voto, o ministro Maurício Corrêa, v.g., argumentou que o conceito convencional de raça foi abolido pela genética e que a intolerância humana é que ainda divide seres humanos em raças. Já o ministro Celso de Mello, por entender que a única raça existente é a espécie humana, afirmou que houve ofensa à dignidade dos judeus por razões de cunho racista. Gilmar Mendes, por sua vez, também indeferiu o pedido, por compreender que em uma sociedade plural não se pode priorizar a liberdade de expressão em detrimento da igualdade e da dignidade humana, daí a previsão constitucional de inafiançabilidade e imprescritibilidade para o crime de racismo (art. 5º, XLII, CF).

Ao final do julgamento, o STF entendeu o racismo um conceito político-social, que se desenvolveu ao longo do tempo e acabou gerando discriminação e segregação. Logo, no entendimento dos ministros do STF o antissemitismo presente nas obras do escritor foi considerado como incentivo ao racismo, sendo, portanto, aplicáveis as sanções penais previstas. Assim, o STF negou o pedido por 8 votos a 3, considerando que o ato de Ellwanger tinha sido típico do crime de racismo e que a divulgação das obras em questão poderia pôr em risco a segurança dos judeus residentes no Brasil (BRASIL, 2001).

2.3 O que é liberdade de expressão?

A liberdade de expressão é o direito de manifestação e exteriorização do pensamento sem prévia censura, sem nenhum tipo de opressão por parte do Estado ou de outros, apresentando-se assim como um dos direitos mais importantes em um Estado Democrático de Direito (art. 5º, IV, da CF). Enfatiza-se que o homem não consegue viver isolado, pois é um ser social, isto é, possui intrinsecamente a necessidade de viver em sociedade, de se relacionar, trocando ideias e opiniões com outros homens. Por isso, essa liberdade é fundamental e é tutelada pela Constituição.

Não obstante, sob a ótica do ministro Marco Aurélio, a necessidade de sempre expressar um pensamento politicamente correto seria uma espécie de tirania. Afirmou ainda que as pessoas não podem ser obrigadas a pensar da mesma forma que as outras. Assim, define-se liberdade de expressão como o direito de expressar um pensamento independentemente de fazer parte de uma linha contramajoritária.

O indivíduo, obviamente, deve sujeitar-se ao direito de resposta dos possíveis prejudicados, proporcional ao agravo, e ao pagamento de indenização caso haja dano material, moral ou à imagem (art. 5º, V, da CF). Além disso, nos casos em que a suposta liberdade de expressão configurar um racismo disfarçado, em função de raça, cor, etnia, religião, origem ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência, há previsão de pena de reclusão (art. 5º, XLII, da CF; art. 140, § 3º, do CP).

2.4 Quais seriam os limites das restrições à liberdade de expressão?

Tal indagação foi respondia com os votos dos ministros Celso de Mello e Gilmar Mendes, ao dizerem que a liberdade de expressão, apesar de ser uma garantia constitucional, não poderia ter um caráter absoluto, tendo assim limites jurídicos, pois não poderia a partir do uso da liberdade de expressão justificar um ato que é considerado um ilícito penal, como o racismo.

O princípio da dignidade da pessoa humana é um valor moral e espiritual inerente à pessoa e constitui o princípio máximo em um Estado Democrático de Direito, sendo inalienável e irrenunciável. Immanuel Kant foi o responsável pela formulação deste pensamento ao dizer que o indivíduo deveria ser tratado como um fim em si mesmo, e não como um meio, um objeto, protegendo assim o ser humano contra qualquer ato de cunho degradante e desumano, proporcionando a garantia de uma vida saudável e digna. Assim sendo, a dignidade da pessoa humana é um dos mais importantes bens jurídicos tutelados pelo ordenamento.

Considerando que as normas jurídicas constitucionais são hierarquicamente equiparadas, quando há colisão entre duas ou mais delas, os valores em questão devem ser harmonizados, equilibrando-os da melhor maneira possível. Além disso, quem aplica a lei pode usar o princípio da proporcionalidade como um instrumento para tomar a decisão mais adequada (LIMA, 2002). Dessa forma, entende-se que a liberdade de expressão de um indivíduo não pode chocar-se com o princípio da dignidade da pessoa humana. Portanto, a decisão do STF em relação ao Caso Ellwanger foi acertada.

CONCLUSÃO

A vida em sociedade impõe que os seres humanos busquem a boa convivência e encontrem maneiras de garantir o exercício de direitos de forma que não haja prejuízo alheio. A máxima que diz “Meu direito começa quando o seu termina” é muito difundida, mas perigosa, por não ser possível precisar os limites que o outro se impôs no exercício de um direito, tampouco sua finalidade. Assim, seria possível que o direito de um indivíduo nunca viesse a ser exercido, por ser o direito do outro muito extenso.

Com o objetivo de solucionar conflitos, tendo em vista o ideal de justiça, o Código Civil, em seu art. 187, afirma praticar ato ilícito quem exceder de forma manifesta os limites impostos, a finalidade econômica ou social, no exercício de um direito. Entende-se então que, diferentemente do expresso na máxima acima, o direito dos indivíduos devem coexistir de forma harmoniosa. Assim, não se justifica que a coletividade seja prejudicada, ainda que moralmente, pela ação ou omissão de alguém que ignora os limites impostos à prática de um direito.

A análise do Caso Ellwanger foi uma boa oportunidade de refletir sobre a forma como alguns indivíduos exercem seus direitos. A garantia constitucional de liberdade de expressão não pode ser subterfúgio para agredir a honra, a dignidade alheia. A Constituição de 1988 garante a liberdade de expressão, mas também garante a proteção à honra. Quando se ponderam as duas garantias, a honra pesa mais. Ou seja, em nome da honra alheia não se deve propagar ideias ofensivas, sob pena de responder judicialmente, como ocorrido no caso analisado.

Como o bom senso não é algo que possa ser medido e dificilmente alguém reconhece não tê-lo, faz-se necessário que o direito apresente limitações ao exercício dos direitos, para garantir a boa convivência humana e para que todos tenham minimamente a garantia de exercício de direitos. É um círculo virtuoso, em que o direito de alguém é limitado para garantir o direito de outrem e o deste é limitado para garantir o daquele.

Espera-se que este trabalho tenha sido útil para demonstrar que, pelo fato de se viver em sociedade, não se pode fazer nada irresponsavelmente. Ainda que não se viole o direito de forma objetiva, deve-se verificar se subjetivamente há respeito à coletividade. Por fim, entendeu-se que o direito não deve caminhar afastado da moral.

*BRASIL. Supremo Tribunal Federal. STF nega Habeas Corpus a editor de livros condenado por racismo contra judeus. 2001. Disponível em: . Acesso em: 28 dez. 2012.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A LIBERDADE de expressão no contexto constitucional brasileiro. 2012. Disponível em: . Acesso em: 28 dez. 2012.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF). Disponível em: . Acesso em: 30 dez. 2012.

_____. Decreto-Lei 4.657, de 04 de setembro de 1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (LInDB). Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657.htm>. Acesso em: 30 dez. 2012.

_____. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil (CC). Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm>. Acesso em: 27 dez. 2012.

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CONSULTOR Jurídico. Editor nazista é condenado a quase dois anos de reclusão. 2004. Disponível em: . Acesso em: 29 dez. 2012.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009.

LIMA, George Marmelstein. A hierarquia entre princípios e a colisão de normas constitucionais. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 54, 1 fev. 2002. Disponível em: . Acesso em: 28 dez. 2012.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 25. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

RICCITELLI, Antonio. Direito constitucional: teoria do estado e da constituição. 4. ed. São Paulo: Manole, 2007.

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