terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Nunca vi esta...

Anísio José era um pernambucano arretado. Gostava de uma boa pinga – e da que tivesse disponível na falta da boa – de jogo e dos carinhos das mulheres nordestinas. Beber, jogar e gostar de chamego nunca foi vergonha. O problema é que o Nissinho, este era o nome pelo qual chamavam Anísio fora de casa, era casado, tinha mulher e seis filhas para sustentar.

– Eu bebo e jogo, eu sei, mas eu trabalho também! – Este era o original discurso de Nissinho, como se estivesse fazendo um grande favor para a humanidade...

Carteado é uma desgraça. Perde-se 100 pratas e quando o bom jogador cansa, o ruim ganha 10 e ainda sai contente. Se depender de minha autorização, boa sorte. Pode sair do trabalho e dedicar-se ao jogo.

Nosso rei da jogatina trabalhava para a prefeitura e sua especialidade eram as pedrinhas portuguesas. Justiça seja feita, ele era um bom profissional, fazia bem seu serviço e, quando os compromissos mais importantes deixavam, fazia uns bicos para a vizinhança. Final de mês, dinheiro no bolso e sorriso na cara. Finalmente a recompensa pelo suor derramado no calçamento das ruas de Recife.

A Lurdinha, mulher do Nissinho, já tinha um pé atrás com o marido. Quando chegava o fim do mês ela tentava com unhas e dentes salvar, pelo menos, as compras das crianças. Geralmente, o dinheiro só dava para o básico: arroz, feijão, farinha, banha, pouco açúcar, leite para o bebê pequeno, fubá, carne de sol e bacalhau – naquela época, o bacalhau era barato, caro era o frango. Quando sobrava algum, ele fazia festa. Comprava uma melancia ou uma jaca e as crianças se encarregavam de destrinchar e fazer a divisão.

Naquele dia algo estava cheirando mal, dizia Lurdinha. A hora de Nissinho chegar com o dinheiro das compras era por volta das duas da tarde. Já eram quatro e meia e nada. Impaciente, a mulher ia de casa para o portão e do portão para casa. Em meio a essas idas e vindas, quem passa pela frente de casa? Um colega de trabalho do marido demorador.

– Boa tarde dona Lurdes, disse o homem de passagem.
– Zé, chega aqui, você viu o Anísio?

Pronto, o diabo já atenta sozinho, quanto mais quando alguém o cutuca...
– Vi sim, Lurdinha.

Viu? A formalidade ficou pra trás. Não se pode dar confiança. O língua de trapo já quer fazer amizade.

– Pois sim, então diga.

O Zé não sabia se dizia a verdade ou uma mentira, mas não podia perder a oportunidade de prestar um favor a uma mulher com os encantos de Lurdinha. Pensou duas vezes e soltou o verbo.

– Sabe o que é? Olha, vai morrer entre nós, mas o Nissinho não recebe da prefeitura o que ele diz pra você...

A mulher arregalou os olhos de raiva e tentou imaginar a real quantia. Não acredito que adiantaria falar os valores reais, ela não sabia fazer contas, mas de todo modo, um pouco de honestidade familiar não faz mal a ninguém! E o Zé continua...

– Quando seu marido recebe, ele já separa o do jogo, o da pinga e o das meninas.

Quando Lurdinha ouviu falar em meninas pensou que eram as filhas do casal. Ela não conhecia a Casa das Primas, lugar aonde os homens iam para jogar, beber, dançar e dar uns beijos nas meninas que se tratavam como primas... É bom não entrar em detalhes.

– Eu sei que ele bebe e joga, seu Zé. Eu só quero o dinheiro das meninas...

Foi aí que o Zé explicou quem eram as meninas para as quais o Nissinho guardava a grana. Nesse momento, Lurdinha botou a cachola para funcionar e teve uma ideia. Decidiu ir ao encontro do marido antes que este gastasse o que não tinha.
– Seu Zé, você me leva na Casa das primas?!

Ele não teve coragem de levar, mas ensinou o caminho direitinho. O circo estava armado. Anísio, a casa caiu.

A esperançosa Lurdes toca a campainha do estabelecimento e, em instantes, um leão-de-chácara abre uma janelinha na porta. O homem se espantou, porque conhecia Lurdinha de vista, sabia que não estava procurando emprego e pior, que seu marido estava lá dentro.

– Oi, o que a senhora quer? – Dá vontade de responder "doces ou travessuras..."

Demonstrando calma, ela disse que queria entrar para conversar com o marido.

– Mas dona Lurdes, a senhora não pode entrar aqui não. Aqui não é lugar, mesmo porque hoje é a festa do cabide. É ordem do gerente!

Até parece que ela sabia o que é uma festa do cabide. A pergunta foi inevitável.

– Mas, moço, o que é festa do cabide?

– É uma festa que para entrar a pessoa tem que tirar a roupa e botar ali. Falou o segurança, apontando para um cabide que já não conseguia sustentar as peças de roupa.

Como a única coisa que ela tinha a perder era o dinheiro das compras, ela não fez por menos. Puxou o zíper do vestido que usava de cima até em baixo e, forçando a porta para entrar, entregou-o na mão do segurança. Sabe aqueles dias em que você quer mais é ver o circo pegar fogo? O segurança estava num desses dias. Fingiu que não viu e abriu passagem para que a justiça fosse feita, pensou ele.

Se Deus acabar com o mundo, Ele vai começar pela Casa das Primas. O lugar é de dar medo pra quem não conhece. Só dá cliente esquisito e mulheres em fim de linha, apesar da pouca idade delas.

A música estava tocando, alguns frequentadores estavam na pista de dança, outros, no bar e alguns nas mesas de jogos. Cadê o Anísio, pensava a quase mariticida. Até que, finalmente, o gastoso foi visto em uma mesa cercado por duas meninas. A mesa estava cheia de garrafas de cerveja vazias e de pratinhos de tira-gosto. Nissinho estava tão eufórico que não viu sua mulher se aproximando.

Na altura do campeonato, não adianta fazer um escândalo. É melhor chegar de mansinho e arrancar o meu na diplomacia, pensou Lurdinha. Ela se aproximou da mesa, tocou no ombro do marido e cochicho-lhe ao ouvido.

– Anísio, olha a vergonha que eu tô passando aqui. Me dá o dinheiro das compras das suas filhas, homem de Deus.

Ele fingiu que não era com ele. Não disse que sim nem que não e continuou enchendo o copo de suas amigas. Até que a curiosidade de uma delas falou mais alto...

– Nissinho, quem é essa mulher?

O sonso olhou a esposa de cima até em baixo como se nunca a tivesse visto e disse para a menina perguntadora.

– Olha, gracinha, nunca vi essa piranha!

O gosto de sangue veio à boca de Lurdinha e ela só não quebrou uma garrafa no marido porque não queria testemunhas de sua viuvez planejada. Mais que depressa, saiu do estabelecimento e pensou em dar um prejuízo ao marido.

Ela passou a mão em um porrete e, com espírito malfazejo, escondeu-se na esquina pela qual o marido passaria se um dia resolvesse voltar para casa. A consciência lhe pesou e ela trocou o porrete por uma palha de coqueiro, mas preparou a parte do talo que machuca mais.

Nissinho se desculpou pelo desconforto e se despediu das meninas. Como um patinho, caiu na arapuca da esposa e passou justamente pelo caminho do acerto. Toma, safado! E lá estava o homem no chão. Caído mais por conta da bebida que da palha de coqueiro.
A mulher achou que havia cumprido com seu intento e foi correndo para casa. Pensava consigo que iria arrumar suas filhas e fugir para a casa de parentes distantes.

– Minhas filhas, eu vou arrumar vocês pra gente ir na casa da madrinha de vocês. E parou por aí. Ela não era boba de falar da pancada...

A criançada tomou banho, se arrumou e juntou alguns pertences para o tempo em que ficariam fora. Quando a mulher finalmente se considera pronta para sair, quem entra pela casa chamando Lurdinha? Pois é, Anísio disse que algo havia caído na cabeça dele e que tinha desmaiado, mas já estava bom. Não se sabe se era fingimento ou não, mas lá estava o boêmio. Cansado de guerra, tirou a roupa e foi tomar um banho. Nunca se deitava sem banho – pelo menos, isso.

Como a esperança é sempre a última que morre, Lurdinha deu uma vasculhada no bolso da calça e encontrou um qualquer. Não era o que precisava, mas era melhor do que nada. Guardou o dinheiro para as compras do próximo dia e fez que não era com ela. Após o banho, o marido pediu janta e saiu, um pouco, do porre. Quando passou a mão no bolso da calça, deu falta do dinheiro e perguntou para mulher se ela havia visto. O que acha que ela respondeu? Sim eu acabei de tirar... Claro que não! Você diria? Ela aproveitou as aulas de dissimulação que tivera com o marido e de estalo respondeu:

– Tá vendo Nissinho?! Te deram com algo na cabeça pra te roubar, filho!

Tudo se acalma, a mulher coloca as filhas para dormir e se deita. No outro dia, ela acorda cedo e vai fazer suas comprinhas. Conseguiu comprar tudo o que precisava e teve uma surpresa: Não é que a grana dava pra compra uma melancia e uma jaca!

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