quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Marginais e Desviantes: uma breve análise sobre a imposição de regras

INTRODUÇÃO

Este trabalho é composto, basicamente, por dois capítulos: o primeiro preocupa-se em resumir e fichar dois textos que fazem parte do livro Uma teoria da ação coletiva, de Howard Saul Becker, um sociólogo e professor universitário norte-americano; o segundo, relaciona as ideias centrais dos textos a outras fontes.

Como é sabido, um resumo não pode ser profundo a ponto de o leitor desinteressar-se pela fonte nem tão superficial a ponto de não apresentar minimamente o material de base. Assim, espera-se que se tenha chegado à boa medida.

Em relação ao fichamento, dentre os mais comuns, optou-se pelo tipo de transcrição, segundo o qual se destaca do texto, ipsis litteris, os excertos considerados mais significantes, para que sirvam de guia para a exposição do tema e para que os leitores tenham ideia da dimensão do enfoque do autor dos originais. Assim, evitou-se repetição desnecessária, caso se escolhesse o tipo “fichamento de comentário”, por exemplo, tendo em vista que esta foi a preocupação das seções seguintes deste trabalho.

Na seção destinada à ideação, por sua vez, os textos lidos foram correlacionados ao conto O Alienista, de Machado de Assis; à música Apesar de você, de Chico Buarque; e ao direito de resistência, incluído explicitamente na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa e implicitamente na Declaração de Independência dos Estados Unidos. Para esta empreitada, serão considerados a objeção de consciência, o direito de greve, a desobediência civil, a autodeterminação dos povos e o direito à revolução.

Por fim, na seção dedicada à crítica, abre-se um espaço para uma análise mais livre, relacionando fragmentos dos textos a informações e exemplos externos, agregando um pouco das experiências pessoais dos membros que compuseram este trabalho, com o objetivo de entender a aplicação dos conceitos estudados à sociedade em que se vive.

Deseja-se que esta seja uma boa leitura e que cumpra adequadamente seu objetivo!

1. PARTE I

1.1 Resumo

No terceiro capítulo, intitulado “Marginais e Desviantes”, Becker afirma que todos os grupos sociais fazem regras e tentam, de alguma forma, fazer com que sejam seguidas. A partir daí, elas determinam o comportamento mais apropriado para cada situação social, estabelecendo o que é “certo” ou “errado”. Diante disso, há duas óticas para a questão do desvio, pois as pessoas consideradas como marginais ou desviantes pelo fato de não terem se adaptado podem entender que quem os julga são os verdadeiros “marginais”, tendo em vista que impuseram regras de cuja elaboração nem todos participaram.

Na sequência, o autor esclarece as situações de transgressão e de imposição de regras, e os processos pelos quais algumas pessoas transgridem ou impõem regras. Para isso, é preciso entender que há regras de muitos tipos, as quais podem ser formais, como as leis, ou informais, cuja desobediência não está submetida ao poder de polícia do Estado, mas a sanções informais de várias espécies. Além disso, a responsabilidade pela imposição das regras pode ser responsabilidade de um corpo especializado, no primeiro caso, ou de toda a coletividade ou membros de um grupo, no segundo. Nesse ponto reside a principal preocupação daquele estudioso: as regras mantidas vivas por meio de tentativas de imposição.

Dito isso, Becker informa que a pesquisa científica buscou resposta para diversas perguntas a respeito das possíveis causas que levariam alguém a desviar-se das regras do grupo. Então, duas premissas do senso comum foram aplicadas, a primeira acredita que haveria algo inerentemente desviante em relação a atos que transgridem regras sociais, já a segunda aceita a existência de alguma característica intrínseca ao desviante, a qual o levaria à inobservância da regra.

Isto posto, na tentativa de definir “desvio”, o professor estadunidense apresenta três definições utilizadas por cientistas, para, na sequência, verificar o que ficaria de fora, caso fossem tomadas como ponto de partida. A primeira delas é essencialmente estatística, a qual fixa como desviante qualquer coisa que varie de forma ampla em relação à média, mas essa definição está muito afastada da preocupação com a quebra de regras que inspira o estudo científico de marginais e desviantes. A segunda delas, sob uma ótica médica, vê o desvio como algo patológico, revelando a presença de uma “doença”. Porém, se há divergências quanto ao que seria um estado saudável do organismo, imagine-se a dificuldade de se especificar o que é funcional ou disfuncional para uma sociedade ou grupo social. Por fim, segundo uma visão sociológica, desvio seria o fracasso em obedecer às regras do grupo.

Esta última, apesar de ser a que mais se aproxima da definição do autor, não oferece o embasamento necessário às ambiguidades que surgem na deliberação de quais regras devem ser aceitas como ponto de comparação para que um comportamento seja medido e julgado desviante. Em razão disso, o teórico sugere que se deve utilizar uma definição que permita lidar com situações ambíguas ou não.

Nesse diapasão, supor que os desviantes constituam uma categoria homogênea, porque cometeram o mesmo ato desviante, ignora o fato de o desvio ter sido criado pela sociedade, haja vista que os grupos sociais criam o desvio ao fazer as regras cuja infração constitui desvio. Portanto, não há que se falar em uma característica intrínseca ao desviante ou certa situação de vida, pois o desvio é a consequência da aplicação por outras pessoas de regras e sanções a um suposto transgressor.

A essa altura, o autor sublinha que o grau em que outras pessoas reagirão a um ato dado como desviante varia conforme o tempo, a pessoa que o comete e aquela que se sente prejudicada. Assim, além de entender que as regras tendem a ser aplicadas mais a algumas pessoas do que a outras, deve-se ter em mente que algumas delas são impostas somente quando resultam em certas consequências. Logo, apontar se um ato é desviante ou não dependerá da natureza do ato e do que outras pessoas fazem em relação a ele.

No final do referido capítulo, há diferentes circunstâncias em que as pessoas tentam impor suas regras a quem não as subscreveu. Na primeira delas, apenas os membros do grupo têm interesse em impor certas regras; na segunda, os membros do grupo julgam importante que membros de outros grupos obedeçam às regras. Assim, o texto indica que forçar outras pessoas a aceitar regras tem relação com o poder político e econômico de quem pratica a imposição.

Continuando, já no quinto capítulo do livro, Becker analisa as pessoas que fazem e impõem as regras às quais os estranhos não se adaptam e, por isso, são chamados de marginais e desviantes. Aduz que a existência de uma regra não garante automaticamente que ela será imposta, pois nem sempre a sociedade fica prejudicada e atua no sentido de restaurar o equilíbrio depois de uma quebra de regras.

Destarte, regras só são impostas quando algo provoque a imposição, a qual exige explicação baseada em diversas premissas: alguém deve tomar a iniciativa de punir o culpado; a imposição ocorre quando aqueles que desejam que a regra seja imposta chamam publicamente a atenção dos outro para a infração; o tipo de interesse pessoal que induz à imposição varia conforme a complexidade da situação para produzir tanto a imposição de regras como o fracasso da imposição.

Entretanto, em casos em que dois grupos competem pelo poder da mesma organização, a imposição ocorrerá apenas se os sistemas de compromisso que caracterizam a sua relação se romperem; caso contrário, o interesse de todos fica melhor satisfeito permitindo-se que as infrações continuem. Portanto, o que em outras situações seria uma infração passa a fazer parte de uma rede de troca de favores, cujo objetivo é não denunciar uma infração para não ser denunciado.

Acrescenta o sociólogo que as regras legais tendem a não ser ambíguas, mas as informais e consuetudinárias têm maior chance de serem vagas e de terem amplas áreas nas quais podem receber várias interpretações, variando, inclusive, para atender aos interesses específicos de alguém. Por fim, apresenta, exemplificativamente, um exemplo a respeito da legislação de taxação da maconha nos Estados Unidos, para ilustrar os caminhos que levaram o uso dessa erva de uma prática indiferente à administração pública a um “problema” a ser resolvido com a imposição de taxas e proibições.

Concluiu-se que, onde quer que as regras sejam criadas e aplicadas, é preciso atentar para a possível presença de alguém que tome a iniciativa de impô-las; sempre haverá quem busque o apoio de grupos para ratificar sua posição; e, por fim, o processo de imposição é moldado pela complexidade da organização, pautado em acordos compartilhados em grupos mais simples e resultando de manobras e barganhas políticas em uma estrutura complexa.

1.2 Fichamento

Segundo Henriques e Medeiros (1999, p. 59), “os fichamentos mais comuns são: a) de indicação bibliográfica: uma ficha que contém apenas nome do autor, título da obra, assunto; b) de transcrição ou citação direta; c) de comentário (também chamado de glosa, ou apreciação); d) de resumo”. Diante disso, optou-se pelo segundo tipo, isto é, o de transcrição, tendo em vista que o primeiro seria insuficiente e os demais se confundiriam com outras seções deste trabalho.

BECKER, Howard S. Uma teoria da ação coletiva. Trad. Márcia Bandeira de Mello Leite Nunes. Rio de Janeiro: Zahar Editores, s.d. p. 53-67/86-107.

“Todos os grupos sociais fazem regras e tentam, em alguns momentos e em algumas circunstâncias, fazer com que elas sejam seguidas.” (p. 53).

“Quando uma regra é imposta, a pessoa que se supõe tê-la transgredido pode ser vista como [...] marginal ou desviante.” (p.53).

“[...] a pessoa que quebra as regras pode sentir que seus juízes são desviantes.” (p. 53).

“As regras podem ser de muitos tipos. Elas podem ser formalmente promulgadas como lei e, nesse caso, o poder de polícia do Estado pode ser usado para impô-las. Em outros casos, representam acordos informais, aos quais se chegou recentemente ou vinculados à sanção da idade e da tradição” (p. 54).

“É facilmente observável que grupos diferentes julgam coisas diferentes como sendo desviantes.” (p. 55).

“as pessoas pertencem a muitos grupos simultaneamente. Uma pessoa pode quebrar as regras de um grupo pelo simples ato de se curvar perante as regras de um outro grupo.” (p. 59).

“ele [o desvio] é criado pela sociedade.” (p. 59).

“os grupos sociais criam o desvio ao fazer as regras cuja infração constitui desvio e ao aplicar essas regras a pessoas particulares e rotulá-las como marginais e desviantes.” (p. 60).

“O desviante é alguém a quem aquele rótulo foi aplicado com sucesso; comportamento desviante é o comportamento que as pessoas rotulam como tal.” (p. 59).

“O fato de um ato ser desviante, então, depende de como as pessoas reagem a ele.” (p. 62).

“O grau em que outras pessoas reagirão a um ato dado como desviante varia enormemente.” (p. 62).

“O grau em que um ato será tratado como desviante depende também de quem comete o ato e de quem sente que foi prejudicado por ele. As regras tendem a ser aplicadas mais a algumas pessoas do que a outras.” (p. 63).

“’marginais’, do ponto de vista da pessoa que é rotulada como desviante, podem ser as pessoas que fazem as regras de cuja transgressão ela foi considerada culpada.” (p. 65).

“As regras formais, impostas por algum grupo constituído em especial, podem diferir daquelas que são consideradas realmente apropriadas pela maioria das pessoas.” (p. 65).

“a existência de uma regra não garante automaticamente que ela será imposta” (p. 86).

“É mias típico que as regras só sejam impostas quando algo provoque a imposição. A imposição, então, exige explicação.” (p. 86).

“O habitante da cidade preocupa-se com seus próprios problemas e nada faz em relação à infração de regras a não ser que ela interfira em seus negócios.” (p. 87).

“Quando dois grupos que competem pelo poder existem na mesma organização, a imposição ocorrerá somente quando os sistemas de compromisso que caracterizam a sua relação se rompem; caso contrário, o interesse de todos fica melhor satisfeito permitindo-se que as infrações continuem.” (p. 92).

“Regras específicas podem ser reunidas em legislação. Podem simplesmente ser consuetudinárias num grupo particular, armado apenas com sanções informais. As regras legais, naturalmente, têm maior probabilidade de não serem ambíguas; as regras informais e consuetudinárias têm maior probabilidade de serem vagas e de terem amplas áreas nas quais podem receber várias interpretações.” (p. 96).

“uma regra pode ser estabelecida simplesmente para servir aos interesses específicos de alguém e uma base lógica para ela pode ser descoberta posteriormente em algum valor geral.” (p. 97).

“onde quer que as regras sejam criadas e aplicadas, esperamos que os processos de imposição sejam moldados pela complexidade da organização, repousando sobre uma base de acordos compartilhados em grupos mais simples e resultando de manobras e barganhas políticas numa estrutura complexa.” (p. 107).

2. PARTE II

2.1 Ideação

O texto de Howard Saul Becker, quando diz que o desviante é alguém a quem um rótulo foi aplicado com sucesso, remete o leitor a O Alienista, um conto realista de Machado de Assis, especialmente quanto à crítica social e à análise psicológica. Nele se vê a personalidade dos indivíduos influenciada por fatores sociais e a sociedade influenciada por fatores psicológicos, tudo sob o atento diagnóstico do Dr. Simão Bacamarte, o protagonista.

Diz-se que o médico diplomado em Portugal escolheu Itaguaí para residir, criar um hospício e estudar a fronteira entre razão e loucura. Assim, analisava a saúde psicológica dos moradores daquela cidade fluminense e seu grau de influência nas relações sociais. Suas análises tinham metodologia científica próprias dele, o qual muitas vezes mudou seus critérios de avaliação. Apesar disso, ele tinha o apoio estatal para tudo o que fazia e ganhou um auxílio da Câmara de Vereadores por cada internação durante muito tempo.

As primeiras indicações de internação foram apoiadas pela sociedade itaguaiense, visto que os internos eram pessoas consideradas loucas por todos. Porém, como o passar do tempo, a população começou a questionar as decisões do alienista, o qual passou a ser visto como um déspota traiçoeiro que lucrava com o aumento do número de internações.

Finalmente, depois de inúmeras teorias, após ver 75% dos moradores aprisionados em seu hospício, o médico mudou mais uma vez seus critérios. Mandou soltá-los e considerou loucos apenas aqueles que mantiveram sua personalidade reta ao longo do tempo. Entretanto, ao ver que este seu último critério era falho e que ele próprio era o único que se manteve “íntegro” até o fim, soltou todos os loucos da Casa Verde e encerrou-se lá até seu último dia.

Esse conto é ilustrativo para que se confirme que a ideia de desvio é criada pela própria sociedade e as razões que justificam a imposição das regras pode mudar com o tempo, não só por uma alteração na mentalidade do grupo, mas também para atender aos interesses de alguns, como ocorreu no caso acima.

Agora, tendo em vista que a imposição de regras tem relação com o poder político e econômico de quem pratica tal ato, pode-se lembrar também da música Apesar de você, de Chico Buarque, a qual demonstra nos versos “Você que inventou o pecado esqueceu-se de inventar o perdão” que o opressor tem facilidade e razões para criar regras, mas não tem o mesmo empenho para desenvolver meios para que os destinatários da norma deixem de ser vistos como marginais e desviantes, mesmo porque, inventando-se o perdão, perde-se parte do poder sobre o outro.

Além disso, o marginal e desviante aos olhos da sociedade, pode rejeitar-se a seguir uma regra pelo fato de não considerá-la justa ou de não ter sido chamado a participar de sua criação. Nesse contexto, marginais e desviantes seriam aqueles que julgam e tentam impor suas próprias regras. Diante disso, veja-se como isso se associa ao direito de resistência.

Sabe-se que, ao longo da história universal, são inúmeros os casos de governos e agentes públicos que, ignorando a legitimidade de seus atos ou a opinião do povo, agem com o objetivo de atender a seus próprios interesses, ferindo o sentimento de democracia. Se por um lado o povo muitas vezes assistiu de forma submissa à tirania, por outro são dignos de menção aqueles em que, ciente de seu poder de mobilização, o povo subjugado conscientizou-se e mudou o rumo de sua própria vida e de seu país.

Com maior ou menor intensidade, com ou sem uso da força, o indivíduo e a coletividade, depois de ferido um direito primário, podem mobilizar-se e lutar pela mudança. Assim, diante de um governo não democrático, os povos têm a faculdade de resistir. O direito de resistência admite inclusive o uso da força para atingir o objetivo de derrubar e substituir o governo ilegítimo por um legítimo, garantindo, como consequência, a manutenção das práticas democráticas.

Na Antiguidade já se falava sobre o direito de resistência a um governo tirânico, que justificaria até mesmo a morte do governante. Platão já discorria sobre a possibilidade de o povo defender-se de um governo tirânico e injusto. Depois daquele filósofo, outros autores trataram do mesmo assunto, como São Isidoro de Sevilha e São Tomás de Aquino.

No final do século XIX, o direito de resistência foi incluído explicitamente na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa e implicitamente na Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776), que declara:
Todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade. Que a fim de assegurar esses direitos, governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados; que, sempre que qualquer forma de governo se torne destrutiva de tais fins, cabe ao povo o direito de alterá-la ou aboli-la e instituir novo governo.
Na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), esse direito não é reconhecido explicitamente, mas implicitamente em seu preâmbulo: “Considerando que é essencial, para que o homem não seja obrigado a recorrer, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão, que os direitos humanos sejam protegidos pelo estado de direito”.

Por sua vez, a Constituição da República Portuguesa (1976), em seu art. 21, na parte que trata dos direitos e deveres fundamentais, afirma que “Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública”. Dito isso em linhas gerais, a seguir se verá a classificação do direito de resistência.

Segundo a classificação do Prof. José Carlos Buzanello, o direito de resistência seria gênero, tendo como espécies a objeção de consciência; a greve; a desobediência civil; o direito à revolução; e o princípio da autodeterminação dos povos (BUZANELLO, p. 17).

Ocorre objeção de consciência quando um indivíduo se recusa a cumprir deveres conflitantes com suas convicções morais, políticas ou filosóficas, ignorando uma obrigação jurídica imposta a todos pelo Estado. Na objeção de consciência existe razoável nível de consciência, com alguma publicidade e sem agitação, com vistas a um tratamento alternativo ou alterações na lei. Observa-se que a própria Constituição de 1988 prevê a objeção da consciência, apresentando duas perspectivas: a primeira é uma recusa genérica de consciência (art. 5º, VIII, CF) e a segunda é uma recusa restritiva em relação ao serviço militar (art. 143, § 1°, CF).

Além disso, quando trabalhadores entendem que seus direitos não estão sendo devidamente respeitados ou quando reivindicam novos direitos, pode-se, de forma organizada, exercer o direito de greve política. Ressalta-se que essa é uma medida de resistência lícita excepcional, semelhante ao estado de necessidade e à legítima defesa, por exemplo.

O art. 9º da Constituição da República assegura aos trabalhadores o direito de greve, esclarecendo que compete a eles a decisão do melhor momento de exercê-lo e dos interesses em questão e que os possíveis abusos podem ser punidos pela lei. Porém, há atividades e serviços essenciais que, dada sua relevância, apresentam regras próprias em relação à greve.

A desobediência civil, por sua vez, é uma forma indireta de participação da sociedade, pois não possui participação suficiente junto às esferas do Estado para tornar-se ente político legítimo. Com isso, ocorre desconsideração da legitimidade de uma autoridade pública ou uma lei. Dentre as propriedades da desobediência civil, encontram-se: não-violência e ações públicas de caráter coletivo; sentimento de injustiça em relação à lei ou uma decisão por meio de pressão junto aos órgãos de decisão do governo; e propostas de reforma jurídica e política. Nota-se que não se pretende exatamente que o governo seja derrubado, mas que suas práticas sejam substituídas.

Em uma perspectiva direta, a desobediência civil se dá quando as leis do Estado são desafiadas de forma aberta (p. ex., campanhas públicas contra a discriminação racial nos EUA e na África do Sul, ou a campanha das Diretas Já, no Brasil). Em uma perspectiva indireta, ataques a leis isoladas desafiam as estratégias do Estado, sendo executados para mostrar publicamente a injustiça da lei e induzir o legislador a revogá-la. (p. ex., o movimento dos sem-terra, que desafia a lei de proteção à propriedade privada e solicita a reforma agrária).

O art. 5º, § 2°, da Constituição brasileira assegura que os direitos e garantias previstos em seu texto “não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Dentre os quais, destacam-se, sobretudo, o princípio da proporcionalidade e o da solidariedade.

Ademais, as nações podem organizar-se livre e politicamente, assegurando sua soberania, a isso se chama autodeterminação dos povos. Assim, escolhe-se a forma de governo (República ou Monarquia) e o sistema de governo (Presidencialismo, Parlamentarismo, Semipresidencialismo) de sua preferência. O Pacto Fundamental assegura que a autodeterminação dos povos é um princípio político de direito internacional (art. 4º, III, CF).

Por fim, quando um povo se sente extremamente prejudicado pela tirania de um governo autoritário, existe o direito à revolução, mesmo que para isso a violência seja utilizada. Destaca-se que a negação disso seria um atentado à dignidade humana (BUZANELLO, p. 20). Por entender que o governo ilegítimo passou dos limites, o povo pode fazer uso da força para reivindicar seus direitos.

Houve importantes movimentos revolucionários que afirmaram e justificaram o exercício do direito de resistência por meio da revolução, dentre eles encontram-se:

• A Revolução Gloriosa: o direito de rebelião fundamentou a defesa filosófica da derrota e substituição de Jaime II por Guilherme III, pelo parlamento do Reino Unido (1688);

• A Revolução Americana: o direito de resistência ocuparia um papel principal nos escritos dos revolucionários norte-americanos. Além disso, foi citado na Declaração de Independência dos Estados Unidos, quando um grupo de representantes de vários estados assinou uma declaração de independência em relação à Inglaterra. Segundo a declaração, a lei natural assegura que o povo está dotado pelo Criador de certos direitos inalienáveis e pode alterar ou abolir um governo que destrua esses direitos;

• A Revolução Francesa: o direito de resistência também foi incluído na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) durante a Revolução Francesa, assim como na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1793.

Assim, demonstra-se que aqueles indivíduos considerados marginais e desviantes podem rebelar-se contra os opressores, não só para descumprir as regras arbitrariamente impostas, mas também para destituí-los do poder.

2.2 Crítica

Depois da leitura dos textos de Becker, cabe analisar de forma crítica alguns pontos considerados relevantes. Veja-se a relação que existe entre a tolerância com os desviantes e as atitudes dos demais indivíduos que veem o comportamento marginal:
Uma pessoa que comete uma infração de trânsito ou bebe um pouco mais numa festa não é, afinal, tão diferente de nós, e tratamos sua infração com tolerância. Consideramos o ladrão menos parecido conosco e o punimos severamente. Crimes como assassinato, violação ou traição levam-nos a encarar o violador como um verdadeiro marginal. (BECKER, p. 54).
Percebe-se, com isso, que quanto maior a probabilidade de o indivíduo praticar o ato desviante ou ter alguém íntimo que o pratique, maior será o grau de tolerância diante de um “delito”. Conforme o exemplo dado, uma infração de trânsito, apesar de ser algo condenável para a maioria dos indivíduos, pode ser cometida por qualquer um. Portanto, antes de apontar a infração de alguém, a tendência é que a pessoa se coloque no local do “infrator” e seja mais tolerante caso haja identificação.

Entretanto, quando a inobservância das regras é relacionada a algo que poucos indivíduos teriam coragem de fazer, como um assassinato ou uma violação, o infrator é tratado sem misericórdia, pois as testemunhas não se veem nele. Deduz-se que a rigidez da punição é inversamente proporcional à probabilidade de os criadores das regras e testemunhas praticarem o mesmo ato.

Além disso, quando se cria uma regra, implicitamente, pensa-se na possibilidade de descumprimento. Diante disso, prevê-se uma sanção, a qual, na prática, diz aos indivíduos: “Caso você descumpra a regra, sua punição será esta. Portanto, pense se compensa”. Por essa razão, há muito mais infratores de trânsito do que assassinos no mundo, pois a sanção destes é bem mais gravosa que a daqueles. Obviamente, quando se diz que algo é proibido, dificilmente os destinatários da norma são totalmente impedidos de fazê-lo. Na verdade, a proibição é uma forma de levar a sanção ao conhecimento da coletividade, mas não tem o poder de impedir o descumprimento efetivamente.

Outro ponto interessante é observar que grupos diferentes julgam coisas diferentes como sendo desviantes. Tendo em vista que pessoas de um mesmo grupo pensam de forma diferente, já é esperado que pessoas diferentes pensem de forma diferente. Lembre-se da política. Todos os políticos, supostamente, lutam por saúde, segurança e educação, mas cada partido, cada político, tem seus próprios métodos. Independentemente da linha seguida, acredita-se que a melhor forma de promover o bem é por meio das práticas do próprio grupo e não das do outro. Portanto, o conceito de certo e errado depende dos olhos de quem vê e essa atitude política se percebe nas mais diversas práticas sociais.

Ao lembrar que as regras tendem a ser mais aplicadas a umas pessoas do que a outras, percebe-se que ainda nos dias de hoje, muitas vezes, a igualdade é apenas formal, isto é, nem todos têm acesso às mesmas oportunidades e, quando são punidos por uma infração, a penalidade não é necessariamente a mesma. Na verdade, antes de considerar o fato, a punição considera o indivíduo, o qual, caso pertença a uma classe abastada ou ocupe uma função de destaque, será perdoado ou terá sua pena abrandada, logo de início ou ao longo do tempo, quando cair no esquecimento dos demais.

Infelizmente, ainda é comum que denúncias aconteçam não para promover a justiça, pensando na probidade e no interesse comum, mas como um instrumento de vingança contra adversários. Antes de beneficiar o grupo, pensa-se em prejudicar o desviante, pelo fato de este ter deixado de atender a algum interesse particular ou por ter colocado obstáculos para a prática de outras infrações. Sob essa lógica, pune-se alguém que cometeu um delito para que o caminho fique livre para que terceiros pratiquem novos delitos, tira-se um corrupto para que outros corruptos tenham sua vez.

Salienta-se que essa prática nem sempre é vista como nociva. Como foi dito, os habitantes dos grandes centros costumam preocupar-se com seus próprios problemas, não interferem nas infrações a regras que supostamente não interferem em seus negócios. Por sempre acreditar que haverá alguém responsável pela denúncia, o cidadão deixa de exercitar sua cidadania e esquece seu papel de fiscal, não só do poder público, mas também do ambiente em que vive.

Apesar disso, se a existência de uma regra não garante automaticamente que ela será imposta, também não garante que ela será cumprida. Daí, é comum que pessoas não queiram se envolver por medo de serem taxadas de delatoras ou perderem oportunidades escusas no futuro, tendo em vista que, sob uma ótica inversa, a fama de honestidade poderia afastar boas oportunidades.

Conclui-se que a leitura desses dois textos de Becker foi importante para a compreensão da maneira como as regras podem ser impostas aos indivíduos e segregar pessoas que não as cumpram ou simplesmente discordem delas. Os textos se sustentam, pois a argumentação e os exemplos apresentados são verossímeis e facilmente identificáveis com regras de experiência comum. Assim, espera-se que este trabalho tenha servido para ensejar questionamentos a respeito de regras que, muitas vezes, são criadas e impostas para atender aos interesses de um pequeno grupo, interessado em segregar os demais indivíduos como marginais e desviantes, sem que isso seja revertido em progresso para a sociedade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSIS, Machado de. O alienista. São Paulo: Editora Martin Claret, 2004.

BECKER, Howard S. Uma teoria da ação coletiva. Trad. Márcia Bandeira de Mello Leite Nunes. Rio de Janeiro: Zahar Editores, s.d. p. 53-67/86-107.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: . Acesso em: 19 jan. 2014.

BUZANELLO, José Carlos. Direito de Resistência. Disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2014.

DECLARAÇÃO dos Direitos do Homem e do Cidadão (1793). Disponível em: . Acesso em: 15 jan. 2014.

DECLARAÇÃO Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: . Acesso em: 15 jan. 2012.

HENRIQUES, Antonio; MEDEIROS, João Bosco. Monografia no curso de Direito. 2ª. ed. São Paulo: Editora Atlas S.A., 1999.

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