RESENHA
Livro resenhado: ALEXY, Robert. La institucionalización de la justicia. Tradução de J. A. Seoane; E. R. Sodero; P. Rodríguez. Granada: LAEL, 2005. (96 pp.)
O antigo, mas sempre atual, dilema entre Direito e Moral
La Institucionalización de la Justicia, do jusfilósofo alemão Robert Alexy, em seu primeiro capítulo, apresenta um artigo que trata da relação entre direito e moral. Sobre a possibilidade de interdependência entre estes, há duas concepções: uma positivista e outra não positivista (ou jusnaturalista). A primeira defende as teses da separabilidade e da separação entre direito e moral; enquanto a segunda, em contraposição àquela, defende uma versão da vinculação entre os dois elementos que intitulam o artigo em questão.
Em sua abordagem sobre a tese da separabilidade, Alexy diz que esta concepção positivista não vê nenhuma relação obrigatória entre direito e moral. Ou seja, as afinidades que se encontram entre eles seriam apenas casuais. Dessa forma, seria negada a existência de interdependência entre direito e moral ou entre o que o direito é e aquilo que deveria ser.
Segundo Alexy, essa tese define a versão mais fraca do positivismo, pois afirma ser possível atribuir qualquer conteúdo ao direito, independentemente de seu compromisso com a justiça. Observa-se que isso não exclui a possibilidade uma disposição constitucional, eventualmente, conter princípios morais que transformem direitos humanos em direito positivo. Assim, esse entendimento positivista assevera que a inclusão de valores morais ao direito seja algo possível, mas não imprescindível, portanto, o direito poderia prescindir de moralidade. Nesses casos, o ordenamento jurídico se autojustificaria.
A tese da separação, por sua vez, é a versão mais forte do positivismo. Esta, além do exposto sobre a separabilidade, defende que existem razões normativas para definir o direito de modo que os elementos morais sejam excluídos. Percebe-se, então, que se trata de dois argumentos distintos. Enquanto a tese da separabilidade observa o que é necessário e analítico, a tese da separação busca argumentos normativos e tenta identificar a melhor definição de direito dentre as várias possíveis. Desse modo, o entendimento positivista de separação mostra que é preferível a exclusão à inclusão de valores morais ao direito.
Caso se considere essa tese correta, a legalidade conforme o ordenamento e a eficácia social seriam itens diferenciadores, o que daria margem à identificação de diferentes vertentes do positivismo jurídico. Portanto, cabe ressaltar a diferença entre eficiência e eficácia de uma lei. Enquanto esta se relaciona ao cumprimento ou não de um ordenamento jurídico –voluntária ou coercitivamente –, aquela está relacionada ao fato de uma lei servir ou não para aquilo que foi criada. Consequentemente, uma lei pode ser eficaz, caso os indivíduos a ela submetidos a cumpram rigorosamente, mas ineficiente, se os objetivos iniciais não forem alcançados.
Em relação à legalidade do ordenamento jurídico, a seu turno, é sabido ser possível que haja normatividade sem moralidade, porém esta não seria um item necessário ou desejável que diferenciasse o conceito de direito segundo os positivistas. Por outro lado, os jusnaturalista concordam que o conceito de direito não pode, ou não deveria, desvincular-se da moralidade. Ao considerar isso, nota-se a existência de duas teses de vinculação: uma forte, que nega a tese da separabilidade, e outra fraca, que nega a tese da separação, pois entende a inclusão como algo desejável ou preferível, mas não imprescindível.
Uma visão jusnaturalista pura e mais radical substituiria a eficácia social e a legalidade do ordenamento pela correção moral, o que seria um fio condutor ao anarquismo(1). Entende-se que esse fato também poderia produzir um quadro de anomia, caso se considere a ausência do Estado e a possibilidade de cada um ser o que quiser, escolhendo seus próprios valores na sociedade em que vive. Para que isso não ocorra, destaca-se a necessidade de o direito positivo ser definido com base na legalidade do ordenamento e na eficácia social.
Visto isso, discute-se se a eficácia social e a legalidade do ordenamento devem estar vinculadas ou não à correção moral. Daí seguem três vinculações possíveis: a) quando há inclusão de valores morais no direito positivo; b) quando a moral delimita o direito positivo; e c) quando a moral aponta para uma obrigação de obediência ao direito positivo. Dessas vinculações decorrem três questionamentos: a) que valores seriam incluídos? b) que limites seriam dados? e c) como seria essa fundamentação?, respectivamente.
Sobre a questão da inclusão, positivistas e jusnaturalistas são harmônicos ao entenderem que o direito possui uma estrutura aberta, por isso, há lacunas do direito positivo que só se resolvem com apoio de uma argumentação de base moral. Lembre-se que, conforme o art. 4º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, quando houver omissão da lei, o juiz poderá decidir o caso com o apoio dos costumes, dentre outras fontes supletivas de direito. Se não fosse assim, na omissão da lei o juiz aplicaria seus próprios valores e não os da comunidade necessariamente. O costume “vigora e tem cabimento, até onde não chega a palavra do legislador, seja para regular as relações sociais em um mesmo rumo que o costume antes vigente, seja para estabelecer uma conduta diversa da consuetudinária” (PEREIRA, 2012, p. 57). Assim, os princípios morais exercem um papel corretivo em relação ao direito positivo.
A propósito, é a urgência da inclusão de princípios e argumentos morais no direito que diferencia o positivismo do jusnaturalismo. Enquanto o direito prestigia certos valores morais, a moral serve de fiel da balança nos casos em que o direito positivo for omisso, configurando, assim, uma relação de retroalimentação. Como se vê, a aplicação de uma lei é a explicitação de que determinado valor moral deve ser observado e a indicação de uma conduta que deve ser corrigida. Se o direito abandonasse essas atitudes, a condenação de alguém seria apenas uma mostra do poder estatal. Ressalva-se que, apesar de a ideia de justiça estar intimamente ligada ao direito, há leis moralmente reprováveis que mesmo assim possuem validade jurídica.
Em relação ao limite que a moral imporia ao direito, aqui também se visualiza um quadro de possível anarquia caso uma norma jurídica perdesse sua validade pelo fato de, até certo grau, não ser condizente com um preceito da moralidade, que não pode ser confundida com moralismo. Então, afirmar que uma injustiça extrema não é direito pode suscitar dois pontos de observação: o do aplicador da lei e o do destinatário dela.
Para exemplificar, recorre-se à peça Antígona, em que Creonte, representante do direito positivo, entende ser injusta a não obediência de um edito seu; enquanto a personagem que dá nome à tragédia, símbolo da defesa do direito natural, entende ser injusto o não sepultamento de seu irmão, o que contrariaria uma tradição ligada à religiosidade de seu povo. Os positivistas diriam que a posição de Creonte preservaria a segurança jurídica, sob pena de várias outras leis serem anuladas pela escusa de não serem adequadas à moral ou aos costumes. Por sua vez, os jusnaturalistas poderiam argumentar que as honras que envolviam o sepultamento de um morto eram anteriores ao edito de Creonte.
O terceiro questionamento sobre a relação entre direito e moral tenta responder, basicamente, à seguinte pergunta: Os destinatários do sistema jurídico teriam um dever moral de aceitar o que está prescrito pelo simples fato de ser lei, independentemente de seu conteúdo? Se fosse assim, a moral seria um fundamento do direito. Sobre isso o positivismo possui simultaneamente duas vertentes: a positivista moral entenderia que, por mais imoral que seja, o que está prescrito não perde sua eficácia social; já a positivista neutral diria que os deveres jurídicos, os únicos estabelecidos pelo direito, não deveriam chocar-se com os deveres morais, mas podem fazê-lo.
Ilustrativamente, lembre-se do auxílio-moradia retroativo que a Assembleia Legislativa de Pernambuco concedeu a políticos com mandato de deputado estadual entre 1994 e 1997, mesmo para aqueles com residência em Recife, sob a alegação de que eles estariam fazendo jus à equiparação com os deputados federais(2). A aprovação de um auxílio do tipo citado torna-o legal. Apesar de ir de encontro à moral, os positivistas diriam que mesmo assim ainda possui eficácia social ou que não deveria ser aprovado, mas pode. Por outro lado, os jusnaturalistas veriam nisso um caso de injustiça extrema, visto que quem residia em Recife no período citado não teve gastos com moradia para participar das atividades parlamentares.
Sobre a objeção de um dever moral geral de obediência ao direito, existem duas classes: uma cuida de anular os fundamentos de tal dever e a segunda, de fazê-los retroceder. A primeira diz que em alguns casos a não observação de um preceito jurídico não traz consequências negativas para a resolução de conflitos e a cooperação social. São casos em que não haveria testemunhas de que um preceito jurídico não foi observado. Aí, pode-se discutir se o que importa para o juízo moral são as ações ou as regras, centro do debate dos utilitaristas. Além disso, é sabido que dificilmente se cometerá um delito que não prejudique nenhuma pessoa e sem testemunhas. A segunda trata de casos em que a vantagem do infrator significa a desvantagem da coletividade, ainda que dificilmente seja comprovado o ato.
Finalizando, entende-se que existe um valor moral que direciona os indivíduos a obedecerem ao direito, desde que este não seja extremamente injusto, viole outros direitos ou esteja desvinculado da moral. Apesar disso, não é simples a tarefa de determinar o que seria extremamente injusto, dada a multiplicidade de dilemas morais que envolvem a sociedade. Assim, acredita-se que o embate ideológico entre jusnaturalistas e positivistas ainda tem espaço para muita discussão, dado o difícil tracejar do limite entre direito e moral.
Referências Bibliográficas
ALEXY, Robert. La Institucionalización de La Justicia. Granada: LAEL, 2005. pp. 17-29.
BRASIL. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Lei nº 4.657 de 4 de setembro de 1942.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 25. ed. RJ: Forense, 2012. pp. 56, 57.
1) Entenda-se aqui anarquismo como um estilo em que “deve-se viver de acordo com a natureza, sem a preocupação de obter bens, respeitar convenções ou submeter-se às leis ou às instituições sociais” (DALLARI, 2012), e não em seu sentido pejorativo de desordem ou vandalismo.
2) Cf. LACERDA, Angela. Deputados de PE recebem auxílio-moradia dos anos 90. O Estado de São Paulo. Disponível em: