sábado, 13 de novembro de 2010

A retórica em "O Alienista", de Machado de Assis

1. INTRODUÇÃO

Desde a Antiguidade, acreditava-se que a argumentação bem fundamentada tem o poder de fazer com que o indivíduo que a domina tenha êxito em seus intentos. Além de conseguir o que deseja, caso consiga convencer o próximo, o indivíduo que domina a arte da retórica dificilmente será ludibriado por falácias e palavras vãs. Em suma, o discurso persuasivo pode manipular pessoas, mas também pode ser um importante instrumento de comunicação. Nesse período histórico, criaram-se tradições de estudo a respeito de técnicas retóricas.

Cícero afirmava que existiam três modos de persuadir, a conhecida Tria Officia, que consistia em convencer, por meio da lógica; comover, por meio da emoção; e agradar, por meio da estética. Antes do citado senador romano, os sofistas, mestres gregos itinerantes, se notabilizaram pelo ensino da oratória persuasiva. Por esse motivo, foram duramente criticados por Platão, que via neles falta de compromisso com a ética, verdade ou justiça em troca do dinheiro.

Entretanto, estudos arqueológicos e filosóficos demonstram que Platão menosprezou a preciosidade técnica da persuasão. Por sua vez, Aristóteles, seu discípulo, sistematizou em sua Arte Retórica fatores com os quais se deveria influenciar o público, a saber: o êthos, que diz respeito ao caráter e à credibilidade do orador; o páthos, relacionado aos apelos da emoção; e o lógos, pertinente à construção do argumento com base na razão e na lógica.

Um argumento consistente deve ser bem fundamentado, apresentar provas, se não verdadeiras, ao menos convincentes. Para que seja consistente, devem-se levar em conta os interlocutores. Caso contrário, o locutor pode ser rejeitado pela plateia, se tentar impor sua opinião. Por isso é importante conduzir o público gradativamente, por meio da lógica, até que se alcance o entendimento comum.

Espera-se definir minimamente os conceitos relacionados à retórica e analisar como ela se aplica em O Alienista, protagonizado por Simão Bacamarte, do qual se analisará, basicamente, o êthos, o páthos e o lógos. Considerando a brevidade deste trabalho, apenas o primeiro capítulo do conto será utilizado para a seleção exemplos.


2. O QUE É RETÓRICA?

Retórica – parte do trivium ensinado em faculdades da Idade Média, que consistia em gramática, dialética e retórica – é a arte ou técnica de convencimento por meio da oratória e outros meios de comunicação, inclusive, não-verbais, que se instalou na cultura grega como disciplina essencial e depois na romana (REBOUL, 2004, p. 71).

Dessa forma, a oratória é um dos campos de atuação da retórica, visto que ela também pode manifestar-se por meio das artes plásticas, da música, etc. A retórica tenta fazer com que o interlocutor se convença de que o emissor está certo, por meio de seu próprio raciocínio. Assim, o objetivo da retórica é dar ferramentas ao interlocutor para que este consiga julgar se o que foi dito é verdade ou não.

Considerando tratar-se de uma técnica, há comportamentos que devem ser observados: a identificação do público, inclusive de seus valores, comportamentos e anseios; a formulação de uma tese que delimite os resultados desejados; a utilização de linguagem clara, que se identifique com a plateia; a seleção de argumentos baseados na lógica que reforcem e sejam coerentes com a tese a ser defendida; a conscientização de que, para o sucesso de uma argumentação, há importantes fatores extralinguísticos que se devem considerar, como escolha de roupas adequadas, ilustrações, impostação da voz e tudo aquilo que for útil para atrair a atenção do público (REBOUL, op. cit., pp. 195 e 246).

Apesar de se conhecerem as técnicas da retórica, a eloquência – capacidade de falar e expressar-se com desenvoltura – segundo Cícero, não tem a ver com receitas:

[...] se ela é autêntica, ocorre naturalmente no orador, desde que ele seja dotado, experiente e culto, ou seja, instruído em todas as áreas essenciais: direito, filosofia, história, ciências. As receitas retóricas, os “truques” para se impor são ineficazes (REBOUL, op. cit., p. 72).

Assim, a autenticidade do orador, associada às técnicas retóricas podem atingir melhores resultados em um discurso. A seguir, será vista uma breve apresentação do conto O Alienista, seguida de breve análise do comportamento de Simão Bacamarte, o protagonista, no desenrolar da história.


2.1 O Alienista

O Alienista é um conto representativo da produção realista de Machado de Assis, especialmente no que se refere à crítica social e à análise psicológica. A sátira que se emprega nessa obra mistura, confunde e desfaz os limites entre razão e loucura. Nela se vê a personalidade dos indivíduos influenciada por fatores sociais e a sociedade influenciada por fatores psicológicos. Dessa forma, nota-se que Itaguaí, cidade em que a história acontece, e seus moradores representam toda a civilização. Em seguida, será feita uma apresentação concisa do protagonista dessa trama.

2.2 Simão Bacamarte

Simão Bacamarte, médico diplomado em Portugal, escolheu Itaguaí, no Rio de Janeiro, para criar um hospício e estudar a fronteira entre razão e loucura. Analisava a saúde psicológica dos moradores de sua cidade e o grau de influência dela nas relações sociais. Suas análises tinham metodologia científica próprias dele, o qual muitas vezes mudou seus critérios de avaliação.

Apesar disso, ele tinha o apoio estatal para tudo o que fazia e ganhou um auxílio da Câmara de Vereadores por cada internação durante muito tempo. As primeiras indicações de internação foram apoiadas pela sociedade itaguaiense, visto que eram pessoas consideradas loucas por todos. Porém, como o passar do tempo, a população começou a questionar as decisões de Simão Bacamarte, que passou a ser visto como um déspota traiçoeiro que lucrava com o aumento do número de internações. Com o tempo, essa ideia foi descartada, pois o médico abriu mão do valor que recebia por cada louco internado.

Depois de inúmeras teorias, após ver 75% dos moradores aprisionados em seu hospício, o médico mudou mais uma vez seus critérios. Mandou soltá-los e considerou loucos apenas aqueles que mantiveram sua personalidade reta ao longo do tempo. Ao ver que este seu último critério era falho e que ele próprio era o único que se manteve “íntegro” até o fim, soltou todos os loucos da Casa Verde e encerrou-se lá até seu último dia.

2.2.1 Êthos

Em relação ao caráter e à credibilidade de Simão Bacamarte, pode-se dizer que era o maior médico do Brasil, de Portugal e das Espanhas, bem formado, reconhecido pelos conterrâneos itaguaienses e, inclusive, pelo rei de Portugal, que tentou convencê-lo a ficar lá, cuidando dos interesses da monarquia. Para ele, a ciência estava acima dos bens materiais ou dos prazeres. “A Ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo” (ASSIS, 2004, p.11). A integridade do médico e seu visível compromisso com a Ciência garantiram, no começo da história, a adesão da população e dos vereadores à criação da Casa Verde, a casa de loucos.

2.2.2 Páthos

Apesar da competência e da confiança que despertava nos cidadãos de Itaguaí, em alguns momentos, usava de sua astúcia para justificar suas decisões, com atitudes que mexiam com a emoção dos ouvintes. Certa vez, para ocultar sua predileção por textos árabes e evitar o choque de ideias com os princípios religiosos do padre Lopes, atribuiu uma inscrição do Alcorão, gravada na fachada de seu hospício, a Benedito VIII. O padre, por desconhecimento, falsa erudição ou fé em demasia, contou histórias sobre a vida daquele eminente pontífice e não percebeu a pia fraude (ASSIS, op. cit., p. 14). A saída encontrada por Bacamarte mexeu com a emoção do padre, visto que este dificilmente seria contra uma citação de um papa.

2.2.3 Lógos

A razão e a lógica permeavam o discurso do médico e o afastavam do sentimentalismo. A escolha de sua esposa, por exemplo, obedeceu a critérios lógicos baseados na ciência e não na afetividade. “[...] Bacamarte explicou-lhe que D. Evarista reunia condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista [...]” (ASSIS, op. cit., pp. 11,12). Considerando que sua intenção era perpetuar a dinastia dos Bacamartes, aquela seria a mulher ideal para dar-lhe filhos.

Além disso, como os loucos de Itaguaí não recebiam tratamento adequado e a Câmara de Vereadores não fazia nada para ajudá-los, Bacamarte viu a oportunidade de que precisava. Pediu à Câmara para abrigar e tratar no prédio que construiria todos os loucos de sua cidade e das vizinhanças, mediante um valor que a Câmara lhe daria, caso a família não pudesse fazer.

Dali foi à Câmara, onde os vereadores debatiam a proposta, e defendeu-a com tanta eloquência, que a maioria resolveu autorizá-lo ao que pedira, votando ao mesmo tempo um imposto destinado a subsidiar o tratamento, alojamento e mantimento dos doidos pobres (ASSIS, op. cit., p. 13).

Os argumentos apresentados pelo médico foram ao encontro das necessidades dos cidadãos. Baseado na razão e na lógica, conseguiu apoio estatal para a construção daquela que seria seu laboratório pessoal para o estudo da lucidez e da loucura, a Casa Verde.

3. CONCLUSÃO

A retórica vem sendo desenvolvida, ensinada e aprendida ao longo dos anos em diversos ambientes, com diversas finalidades. Entretanto, sempre relacionada à tentativa de convencer o leitor ou ouvinte de algo que beneficie os interesses do orador ou da coletividade.

Atualmente a retórica não é mais tão associada à produção de discursos, mas à interpretação deles, associando-se, assim, à gramática dos antigos. O ensino das técnicas para se fazer um discurso tem sido identificado com a formação literária e filosófica, deixando de ser vista como retórica. Ela não se limita mais aos três gêneros oratórios da Antiguidade, mas anexa discursos persuasivos modernos, criando, dessa forma, retóricas específicas, como a cinematográfica, a musical e a publicitária, dentre outras (REBOUL, op. cit., p. 82).

É importante observar que, apesar do uso indiscriminado dos dois termos, convencer e persuadir têm sentidos próximos, mas não iguais. O primeiro envolve o público com argumentos lógicos, por meio da indução e da dedução; o segundo, apela para a emoção da plateia quando seleciona e apresenta argumentos.

Simão Bacamarte soube utilizar elementos da retórica para concluir seu plano de construir um hospício e estudar a loucura em sua cidade. Provavelmente, sua cultura trazida da Europa o ajudou na tarefa de persuadir e convencer toda a cidade de que suas ideias faziam algum sentido, pelo menos no começo. A boa argumentação do médico fui um dos materiais que construíram a Casa Verde.

Este trabalho não esgota os temas relacionados à retórica, tampouco dá conta de toda a subjetividade do conto analisado. Entretanto, espera-se que tenham sido minimamente apresentados ao leitor e exemplificados com textos retirados de O Alienista, uma das obras machadianas que, apesar de publicada há mais de 120 anos, continua despertando o interesse dos leitores, levando-os à reflexão sobre o que seria loucura.


4. BIBLIOGRAFIA

ASSIS, Machado de. O Alienista. São Paulo: Martin Claret, 2004.

DICIONÁRIO Houaiss da Língua Portuguesa. 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001.

ESTEVÃO, Roberto da Freiria. Retórica e Direito : A importância jusfilosófica da argumentação retórica. 2007. 219 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Centro Universitário Eurípedes de Marília, Marília, SP, 2007. Disponível em: http://www.fundanet.br/servico/aplicativos/mestrado_dir/dissertacoes/Ret%C3%B3rica_e_direito_-_a_import%C3%A2ncia_jusfilos%C3%B3fica_da_argume_1103_pt.pdf. Acesso em: 29 out. 2010.

GUERREIRO, Carmen. A atração pelo argumento. Revista Língua Portuguesa. Edição 60. São Paulo: Editora Segmento, 2010. Disponível em: Acesso em: 25 out. 2010.

LIMA, Luiz Costa. O palimpsesto de Itaguaí. In: Pensando nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.

REBOUL, Olivier. Introdução à Retórica. Tradução de Ivone Castilho. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2004.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Do apiedar-se

Apiedei-me de vós quando pensastes que estaríeis mais seguros se vos cercásseis de confederados. Vosso pelotão foi preparado para guerrear contra qualquer um que se pusesse à frente. E para isso não poupastes ninguém. Mentiras foram implantadas, mentes foram convencidas. Transformastes o bem em mal e carreiras foram destruídas.

Se quisésseis que os antigos combatentes mudassem as estratégias aplicadas, simplesmente os teríeis orientado melhor. Mas vosso objetivo era outro. Ampliar vossa área de atuação e conquistar outros territórios foi vossa meta. Destes ordem e um rolo compressor passou por cima dos que foram indiferentes a vosso ineficaz comando. Para cada baixa, uma substituição a vosso bel-prazer.

Convocastes soldados que estivessem dispostos a acatar vosso controle e participar de cada batalha vossa. O tempo se passou e os novos combatentes não mostram a que vieram, tampouco tivestes competência para guiá-los pelo melhor caminho. O desinteresse pela vossa causa surpreendeu-vos, mas isso não é incomum. A vida costuma surpreender os distraídos.

A expressão de humanidade que há em vós se configura pela sucessão de estratégias equivocadas que criais. Em nada causais inveja aos que têm uma visão ampla e colocam em prática as táticas que o supremo comandante ensinou. Apiedo-me de vós, que fazeis questão de caminhar sem saber que caminhais em círculos. E a guerra continua...